Num país sem tradição memorialística, como é o caso português, no qual as memórias representam sobretudo a justificação de acções pretéritas, procurei apresentar a minha vida friamente. O facto de ter tentado registar tudo aquilo que vivi pode criar a ilusão de objectividade, mas é evidente que cada um cria a «sua» própria história e a da «sua» família.
O excerto, retirado da introdução à autobiografia de Maria Filomena Mónica, explica claramente o que se pode encontrar em Bilhete de Identidade – uma tentativa de que a objectividade presidisse à escrita destas memórias. Não obstante, a objectividade é aqui evocada não no sentido de filtrar o passado, mas no sentido de não retirar ou incluir episódios da vida por autocensura ou por outra qualquer razão. Todavia, e como se explicita na segunda parte do excerto, dificilmente poderá alguém rever a sua vida sem mácula de subjectividade. Maria Filomena Mónica não é excepção, como ela própria adverte o leitor ao afirmar que este não encontrará no seu livro a Verdade, mas apenas a sua verdade.
Ora, a falta de “tradição memorialística” a que alude a autora tem consequências também na forma como lemos um género não muito usual na nossa língua. Nos primeiros capítulos, foi comum não ver com bons olhos certas passagens, principalmente quando começaram a aparecer referências às “criadas” da família Mónica, termo que sempre me pareceu insultuoso. Depois, com a descrição da vida escolar, também senti que havia ali uma ponta de orgulho injustificada, já que a rebeldia à instituição não lhe seria perdoada se ela não proviesse de uma família como a sua. No entanto, trocando impressões com o amigo que simpaticamente me emprestou o livro, consegui aplacar a tentação de ver as memórias de outra pessoa apenas com os meus olhos. O conselho de enquadrar Maria Filomena Mónica no seu contexto foi seguido, o que me permitiu ler o livro com objectividade, definitivamente mais necessária do lado do leitor do que do lado do escritor, neste caso.
Muito embora não seja uma leitora assídua de biografias ou de autobiografias, julgo que a premissa de que partiu a autora de publicar o seu livro “sem medos, nem sentimentalismos” beneficia sobretudo o leitor. Ainda assim, e ironicamente, o tom excessivamente sentimentalista que marca as páginas em que Maria Filomena Mónica fala do seu casamento, principalmente no capítulo dedicado ao seu fim, prejudica o livro no seu todo por lhe quebrar o ritmo.
Não obstante, estas memórias ganham um novo fôlego com a ida de Maria Filomena Mónica para Inglaterra, até porque, a partir deste ponto, a vida da autora se vai cruzando de forma mais intensa com a vida política nacional. Com a Revolução de Abril, temos a possibilidade de ver esse cruzamento entre a vida pessoal da autora com a agitação social e política que marcou Portugal e, aqui sim, talvez pelo tempo já passado, é-nos dada uma visão desse período sem sentimentalismos.
Maria Filomena Mónica, Bilhete de Identidade: memórias 1943-1976, Alêtheia Editores, 2006.