Primeiro romance do jornalista Rui Cardoso Martins, E se eu gostasse muito de morrer parte de um facto («são estatísticas e está tudo em números») e de uma pergunta inevitável: a taxa de suicídios é mais elevada no Alentejo do que no resto do país. Porquê?
O livro de Rui Cardoso Martins foi publicado ainda em 2006 e foi há cerca de dois meses que o li, depois de assistir a uma apresentação da obra feita pelo autor, na Biblioteca Municipal de Póvoa de Santa Iria. Ao ouvir o escritor falar da sua obra era impossível não satisfazer a curiosidade com que fiquei em relação a este livro, que, aliás, já me tinha chamado a atenção nos escaparates das livrarias, obviamente pelo título.
E se eu gostasse muito de morrer, título que é, também, uma citação da obra maior de Dostoievski, Crime e Castigo, aborda em forma de romance um tema que parece, pelo menos à primeira vista, mais fácil de tratar num estudo sociológico do que numa obra de ficção. A escolha singular, todavia, não me tornou de modo nenhum céptica em relação ao livro. Muito pelo contrário, já que era grande a vontade de o ler e descobrir qual a maneira encontrada por Rui Cardoso Martins para versar sobre este tema no género por ele eleito.
À partida, eram dois os problemas que me pareciam poder dificultar a tarefa de centrar um romance no que, afinal, é um dado estatístico e, no reverso da medalha, uma realidade humana de contornos trágicos. Ou a narrativa acabaria por mergulhar demasiado no lado mais dramático do suicídio, ou, no extremo oposto, à força de querer abordar a questão de forma excessivamente objectiva, o resultado seria, justamente, um estudo sociológico e não um romance.
Felizmente, Rui Cardoso Martins conduz a narrativa sem cair em nenhum dos extremos, facto que muito deve à escolha do narrador. Um rapaz que perdeu a sua mais importante ligação ao mundo exterior oferece-nos a sua visão peculiar do mundo, do Alentejo (onde sempre viveu), das pessoas que o rodeiam... É esta marca pessoal que nos conduz numa série de episódios em que a tragédia é contada com ironia e, por vezes, até com humor (negro, claro está). A perda de alguém que não morreu, deixa o narrador sozinho a contas com um lugar cuja história é feita da memória dos que ali optaram pela morte. É intrusada na morte nos outros que vamos ficando a conhecer a vida do nosso narrador, sendo a sua própria história fragmentada ao longo do livro (espelho do que mundo em que vivemos?).
E se eu gostasse muito de morrer fala-nos de um Alentejo distante da miragem de paredes caiadas de branco e vida calma que nos habituamos a evocar sempre que pensamos no sul do país. Aqui, é uma imagem decadente daquela região que é trazida à superfície; um Alentejo marcado por uma realidade ainda por explicar. Ao chegarmos à última página, a questão inicial continua sem resposta: porquê?... Abyssus abyssum invocat.
Rui Cardoso Martins, E se eu gostasse muito de morrer, 3.ª edição, Dom Quixote, Lisboa, 2007.