Depois de algumas semanas de ausência, o Olho da Letra vai voltar ao ritmo normal, agora, também, com mais tempo para as leituras. A leitura das histórias inverosímeis de Christa Wolf, que foi interrompida pelo acréscimo do volume de trabalho, terá de ser recomeçada e ainda me esperam as últimas aquisições feitas durante a Feira do Livro. Entretanto, a silly season vai ser uma boa altura para rever algumas leituras.
Precisamente para renovar o modo como vemos certas obras, lembrei-me de reler a crítica de T. S. Eliot a Hamlet, e que se encontra recolhida no volume Ensaios Escolhidos, publicada pela editora Cotovia. Quando partimos para a leitura de certas obras, como é o caso de Hamlet de Shakespeare, que adquiriram o estatuto de obras-primas da literatura, começamos a ler com o conforto de sabermos que esse título que lhes é atribuído nos liberta de uma postura crítica e objectiva mais rigorosa. Por outras palavras, liberta-nos, a nós leitores, do trabalho individual de desconstrução do texto (nos seus mais variados aspectos) e deixa-nos apenas com a obsessão de ver o que outros já viram. Se a opinião geral, e até esmagadora, sobre a peça de Shakespeare é a de que estamos perante a obra complexa de um génio, todo o trabalho de descodificação textual vai ser empregue em acompanhar o génio e não em questioná-lo, em tentar vencer a anunciada complexidade e não em compreender os mecanismos responsáveis por essa dita complexidade.
Não foi este, porém, o caminho seguido por T. S. Eliot no seu ensaio sobre Hamlet. Não só o seu texto expõe o que ele entende como sendo as fragilidades da crítica que o antecedeu, como defende que aquela que é considerada a obra maior de Shakespeare é, na verdade, “um insucesso artístico” (p. 19). Aliás, numa frase, Eliot consegue resumir de forma clara e lapidar o seu ponto de vista acerca da peça e da leitura generalizada que é dela é feita: “E provavelmente mais pessoas considerariam Hamlet uma obra de arte porque a acharam interessante, do que a acharam interessante porque é uma obra de arte. É a «Mona Lisa» da literatura” (p. 19).
Não vou aqui fazer um resumo dos argumentos usados por Eliot no seu ensaio, porque me parece mais relevante que cada um faça a sua leitura de Eliot e que, depois, vá questionar o que é aparentemente inquestionável, seja Hamlet, seja outra qualquer obra. A mérito do texto de Eliot não está em ficarmos convencidos de que Hamlet é um “insucesso artístico”, como o próprio diz. Podemos ou não concordar com Eliot, total ou parcialmente, mas o que realmente importa é perceber que a crítica literária não serve para ser aceite ou reprovada cegamente, tão-pouco serve para ser parafraseada ou até mesmo debitada. O papel da crítica não é o de nos levar a ler com os olhos dos outros. Deve ser, em primeiro lugar, o de nos obrigar a ler com outros olhos.
T.S. Eliot, Ensaios Escolhidos, selecção, tradução e notas e Maria Adelaide Ramos, Livros Cotovia.
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