É, portanto, em Nova Iorque que vamos encontrar três núcleos de personagens que acabam por se cruzar. A primeira parte do livro, intitulada “Personagens” serve, justamente, para nos apresentar a Trick Watso, estrela pop mundial; Carlos Abroso, jornalista de um canal de televisão português; e o efémero O Grupo, composto por quatro actores: Violet, Jill, Grossman e Velasquez.
Trick está a tratar da orquídea na sala quando ouve o som. Dizem que há quem o confunda com o estrondo de uma porta, um barulho na televisão, um escape de automóvel, mas Trick Watso, a estrela planetária da pop, percebe logo que é um tiro.
Assim começa Perfeitos Milagres, pelo fim. O tiro de que fala o excerto é o tiro que Kim, mulher de Trick, dispara contra ela própria. A morte, aliás, é omnipresente no romance, embora não a narrativa não se centre nela. O tema ligado à morte recorrente no livro, é, pelo contrário, a reacção das personagens às mortes que as afectam, ou seja, as histórias acabam por se centrar nas diferentes formas encontradas para sobreviver perante a morte. Em Trick, a reacção à morte da mulher passa por se livrar de um Trick fabricado, ironicamente, fabricando uma outra identidade que lhe permita ser de novo anónimo. Além disso, a morte de Kim traz o fantasma de outra morte (de outro suicídio) que ele julgava enterrada na sua própria memória, a da mãe. É procurando compreender o que aconteceu quando ainda era Theodore, que Trick procura sobreviver a mais uma perda.
Uma outra morte assinala o fim da apresentação das personagens: o fim d’O Grupo. Constituído por quatro actores visionários, que pretendem descontextualizar o teatro tirá-lo do palco e levá-lo para o quotidiano das pessoas, O Grupo actua em entradas de hotéis, ou no meio de transeuntes na rua. No entanto, parecem falhar no principal: conseguir uma reacção das pessoas, conseguir provocá-las de modo a interromper-lhes o fluxo ininterrupto e sempre igual do correr dos dias.
Apesar de a acção se situar em Nova Iorque, o autor quis que houvesse um elemento português no seu romance e, assim, talvez se explique a personagem de Carlos Abroso. Todavia, a sua presença apenas me parece justificada na relação que mantém com outras personagens, não sendo, por si só, uma personagem interessante. Carlos parece antes uma sombra que se vai cruzando com as outras personagens.
Ainda no que diz respeito ao espaço do romance, decorrendo a acção na Nova Iorque pós-11 de Setembro, não é de surpreender que a actualidade irrompa com mais ou menos relevância na narrativa. Referências, normalmente bastante directas, à guerra, ao terrorismo, à paranóia ou a referência à situação dos suspeitos de terrorismo presos pelo governo americano são questões que também encontram aqui lugar.
Mais uma vez, os universos do cinema e do teatro, tão caros ao autor (como já tinha referido numa outra ocasião a propósito do seu livro de viagens Livro Usado), continuam a ser uma marca (bem presente) da escrita de Jacinto Lucas Pires. Nas descrições das personagens, que muitas vezes nos fazem lembrar indicações de um encenador ou realizador, ou na descrição de espaços (principalmente exteriores), em que parece estarmos a acompanhar os planos captados por uma câmara, torna-se bastante evidente que a componente visual é um dos ponto fortes de Perfeitos Milagres. Em relação ao teatro, essa presença é ainda mais evidente, como se verá, já perto do fim, em “Textos”.
Não obstante, o que mais me agradou neste romance foram sem dúvida os pormenores, as ligações que se vão fazendo entre as personagens e que não passam pela presença de umas perante as outras. São pequenas coisas (ou grandes) para se ir descobrindo durante a leitura. Mas estas ligações, este “bailado de fios invisíveis”, para usar uma expressão do livro que é também uma desses fios a descobrir, revelam, afinal, a mão criadora – uma das surpresas do livro a ser descoberta em “Autobiografia”.
Jacinto Lucas Pires, Perfeitos Milagres, Livros Cotovia, 2007.