domingo, maio 20, 2007

“Man with a movie camera”



Publicado em 2001, com a chancela da editora Cotovia, Livro Usado, de Jacinto Lucas Pires, surgiu integrado na colecção «Série Oriental / Viagens». Reunindo vários autores de língua portuguesa, José Eduardo Agualusa, Bernardo Carvalho e Paulo José Miranda, para além do próprio Jacinto Lucas Pires, a «Série Oriental / Viagens» resulta de uma parceria entre a Cotovia e a Fundação Oriente. Para os escritores o desafio consistiu em viajarem para países como Goa, Mongólia, Macau ou Japão e registarem em forma de livro as suas visões do Oriente.

O resultado da viagem de Jacinto Lucas Pires ao Japão é o seu Livro Usado, um livro de viagens cuja leitura nos faz esquecer que o que temos nas mãos é um livro, parecendo, ao invés, que estamos a espreitar as notas que outra pessoa apontou sobre a sua viagem. Parece, realmente, um caderno em forma de livro o que chegou até nós, com o registo do percurso do escritor pelas cidades japonesas que visitou, das impressões e dos pequenos incidentes do quotidiano, através dos quais se marca, no fundo, a nossa igualdade, mas também a nossa individualidade cultural. Se são as coisas mais banais que nos contam que a vida corre da mesma maneira a Este (as pessoas que passeiam nos jardins em Tóquio ou que regressam a casa ao fim do dia são as mesmas aqui ou no Japão), são, do mesmo modo, os pequenos pormenores que nos lembram que estamos num mundo diferente do nosso: no metro, “uma mulher pequena, de óculos e com uma máscara de cirurgião na boca”; “um rosto de fada ou de bruxa, todo pintado de branco”; um homem novo que se levanta do seu lugar na carruagem para, em sinal de respeito, cumprimentar um outro homem, mais velho, com uma vénia, retribuída pelo outro de forma mais comedida (pp. 16 e 17).

Afinal, diz-nos o próprio Jacinto Lucas Pires, numa intromissão da escrita na observação da vida, que o objectivo não é outro senão o de “escrever sobre a vida, fazer da vida o assunto, compreender a vida” (p.21). A frase “óbvia” e “difícil” é, na verdade, o que está por trás de cada cidade, de cada descrição, de cada pessoa que se vê na rua, escolhida como actor, actriz ou figurante das cenas que se vão desenrolando perante os nossos olhos.

Os universos cinematográfico e teatral são presença e método de escrita, poder-se-á dizer, que não passam despercebidos neste livro: “Logo a seguir, como num filme, um rapaz lança-se a correr atrás de uma rapariga que é só um ponto lá ao fundo, longe. A multidão de velhos de tichârte, jovens executivos e mulheres novas de sapatos altos fica pasmada a olhar. O rapaz corre, corre, mas quando está mesmo a apanhá-la, a rapariga, lembrando-se de alguma coisa, pára e dá meia volta; e os dois acabam por ir um contra o outro, surpresos e felizes (como num filme).” (p.20); “De manhã, sob o céu branco, as pessoas aparecendo na rua como num palco, numa peça de teatro nô” (p. 28). À transposição, meticulosa e de uma visualidade acutilante, para palavras da luz das cidades, do seu movimento próprio não é estranha a linguagem própria do cinema e do teatro, áreas nas quais o autor também tem desenvolvido uma intensa actividade. Este cruzamento da escrita com o aspecto visual do cinema e do teatro transformam cada momento do dia, numa cidade distante, em objecto plástico, cada cidade num acontecimento cénico, no qual nem o próprio escritor se esquiva de participar, fazendo das palavras câmara que acompanha a sua descoberta do Japão.

1 comentário:

Inês Rosa disse...

Este teu post faz-me lembrar o rapaz, na Tunísia, que me chamava "japonesa" ou o nome de uma marca japonesa, porque eu andava com uma máquina de filmar na mão. É das melhores recordações que trago, o seu sorriso malandro a chamar por mim.
Tenho de ler essa colecção. Vai fazer-me "reviajar".