quinta-feira, maio 03, 2007

Ler os clássicos




Li Homero pela primeira vez quando entrei para a faculdade, o que rapidamente se provou ser um erro, ainda que por razões que parecem fazer afronta às regras mais básicas da lógica. A altura não foi a melhor: comecei a ler a Ilíada e a Odisseia tarde demais e cedo demais. Tarde demais, porque não devia ter esperado até que ler Homero fosse uma obrigação; cedo demais, porque quando o fiz ainda não existiam as traduções de Frederico Lourenço e as edições da Cotovia. Li, pois, a Ilíada e a Odisseia em duas edições de bolso, o que, desde logo, antevi ser meio caminho andado para uma leitura penosa. E, realmente, foi penoso ler os feitos de Aquiles e de Ulisses numa tradução de outra tradução, com um corpo de letra minúsculo, com uma mancha que não deixa espaços em branco, nem para o leitor respirar.

Durante noites a fio, mais do que as que seriam necessárias para ler os dois volumes, me debati com a vontade de ler tudo na diagonal, e o dever de ler, no fundo, uma das mais importantes matrizes da literatura ocidental. Ler a Odisseia era mais fácil, a narrativa das aventuras de Ulisses parece resistir melhor, pelo menos para mim, a uma má edição. Terá ajudado, muito provavelmente, o facto de ter lido, ainda em criança, a adaptação do texto homérico feita por João de Barros e já conhecer todos os episódios da viagem de Ulisses. Quanto à Ilíada, devo confessar que a tarefa não foi tão fácil e, muito honestamente, a cada página que passava, não via a hora de Aquiles matar Heitor. Em abono da verdade, para esta impaciência não ajudava o facto de ter de ler a Ilíada quase em contra-relógio, uma vez que em fila de espera já se encontravam a Odisseia e a Eneida.

Mesmo assim, julgo que o grande problema está em haver quem ainda não tenha compreendido que ler um livro numa edição de bolso não tem que ser um castigo que quem não tem a possibilidade de comprar outras edições tem que sofrer. Uma edição de bolso, como o comprovam os livros ingleses, franceses ou, aqui mais perto, espanhóis, pode ter um custo mais baixo sem que isso resulte num produto de fraca qualidade. Não podemos esquecer que o compromisso de um editor para com os compradores dos seus livros não é apenas o de ir acrescentando títulos ao seu catálogo, mas sim, e principalmente, de fazer chegar até aos leitores objectos de qualidade, tanto ao nível de conteúdos como ao nível gráfico. Um bom livro não se faz simplesmente com um bom texto e um mau livro pode desvirtuar a leitura de uma obra, por melhor que esta seja.

Apesar de tudo, li os dois livros, integralmente. Porém, passado o alívio inicial, a leitura não me deixou em bons termos com Homero. Eu sabia que tinha lido, mas não sentia como se tivesse realmente lido. Não consegui apropriar-me do texto. Quando as novas edições da Ilíada e da Odisseia foram publicadas com a chancela da Cotovia, e tive oportunidade de as ir folheando nas livrarias, comecei a achar que estava na altura ler os clássicos novamente, em especial a Ilíada. Ainda não o pude fazer, mas vou lendo a Ilíada num suporte alternativo. A beleza dos clássicos, é que, em relação a eles, o verbo «ler» não se usa no passado, porque a sua leitura não acaba no acto físico de abrir um livro, de ler, de ir virando as páginas. A minha leitura da Ilíada é, afinal, contínua e sempre renovada, sem que eu tenha voltado a abrir o meu livro.

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