domingo, setembro 24, 2006

«O Assalto»

O Assalto é, possivelmente, a obra de Harry Mulish mais conhecida fora do seu país natal, a Holanda. A este facto não é certamente alheia a adaptação desta obra ao cinema e o Óscar para melhor filme estrangeiro com que foi galadoardo em 1986. Publicado em 1982, a história de O Assalto começa em 1945, no último ano da 2.ª Guerra Mundial, dividindo-se em cinco episódios que correspondem a cinco fases da vida da personagem principal, Anton Steenwijk. Entre nós, o livro foi publicado em 1988 pela Caminho, na colecção «Uma Terra Sem Amos».

Os motivos que nos levam a escolher este ou aquele livro influenciam sempre, de alguma maneira, a leitura (ou leituras) que fazemos. Escolher um livro por acaso, ou porque nos foi recomendado por alguém tem repercussões na forma como lemos e naquilo que procuramos quando lemos. Quando li O Assalto pela primeira vez, escolhi-o com o objectivo de escrever sobre ele e, por isso, quando iniciei a leitura, fi-lo com toda a atenção virada para o que me poderia dar um bom tema de trabalho. O tema descobri-o antes de entrar no livro propriamente dito. Foi a partir da epígrafe que construí uma leitura, entre tantas outras possíveis, desta obra. Logo, a minha leitura foi, desde o início, orientada para a procura das relações que podiam ser estabelecidas (os pontos de aproximação, mas, também, os pontos de diferença) entre a epígrafe e o texto por ela introduzido. Ainda assim, e apesar de este tipo de leitura estar, em princípio, muito marcado pelo propósito utilitário que serve, devo dizer que a leitura não se tornou mais pobre por isso, muito pelo contrário, página a página me ia apercebendo de que o caminho que tinha decidido seguir fazia que a cada passo descobrisse certos pormenores que talvez me tivessem escapado numa leitura mais despreocupada.

A história de Anton Steenwijk cruza-se, neste livro, com a história da Holanda, muito embora esse cruzamento não se limite a um acontecimento histórico. A Guerra é, sem dúvida, o centro de tudo, ponto de partida e, simultaneamente, o tempo que a memória — do autor e das personagens por ele criadas — insiste em revisitar. Não obstante, outro ponto de contacto igualmente relevante, que podemos explorar, assenta na ideia de que a história, de um homem ou de um país, ficcional ou real, se constrói e progride no equilíbrio delicado entre o que é, por natureza, antagónico. A epígrafe de O Assalto, retirada de uma carta de Plínio, o Jovem, a décima sexta carta do livro VI, diz o seguinte: «Por toda a parte era já dia, mas aqui era noite; não, mais do que noite». Evidentemente, sabendo que o livro trata sobre a vida durante e depois da 2.ª Guerra Mundial, identificaremos a noite, imediatamente, como uma forma de retratar o tempo histórico sobre o qual se centra Mulisch. Porém, não me parece que tenha sido esse o único motivo que tenha levado o autor a escolher este passo da carta de Plínio. A frase, na verdade, encerra mais do que uma possibilidade estrita de relação com o tempo vivido pelas personagens do livro, no sentido em que introduz o jogo de antagonismos que é explorado ao longo da obra: «aqui» e «por toda a parte», «dia» e «noite», memória e esquecimento, acaso e destino, vida e morte, fragilidade e poder. A carta de Plínio em causa é endereçada a Tácito e tem como finalidade responder ao desejo expresso por este de obter mais informações sobre a morte do tio de Plínio, o Jovem. Esta morte é apresentada pelo remetente da carta como uma consequência da actividade vulcânica do Vesúvio em 79 a.C. Portanto, o que vamos encontrar na carta é a descrição de erupção do Vesúvio. Menciono este facto porque o que Mulisch faz ao longo do seu livro é, de certo modo, testar a curiosidade do leitor. São inúmeras as referências ao longo da obra, em primeiro lugar, à antiguidade clássica, principalmente na figura do pai de Anton, e, em segundo lugar, a elementos comuns ao fenómeno descrito na carta de Plínio: cinza, fogo, poeira, explosões, etc. Mas não é apenas dentro de um quadro de semelhanças que Mulisch joga. As diferenças são também evidenciadas, e é na necessidade de comparação entre o que é comum e o que difere que o leitor é convidado a debruçar-se.

O Assalto é um livro humano, mas não deixa igualmente de ser um desafio ao nosso lado mais racional, porque, não direi que exige, mas pede um leitor atento e curioso. Ao ler, rapidamente percebemos que nenhuma escolha do escritor é inocente. Cada palavra, cada acção narrada, cada objecto descrito num certo ponto do livro podem-nos levar a reler páginas que já ficaram para trás, daí que se possa afirmar que a importância da memória não reside apenas na narrativa, ela é também transportada para o acto de ler.

Edição utilizada:
Harry Mulisch, O Assalto, tradução de Maria Alice Vila Fabião, Editorial Caminho, Lisboa, 1988.

No site da Caminho é dada a informação de que este livro se encontra esgotado. No entanto, não se encontra desaparecido e está disponível aqui


Edição que encontrei com a carta de Plínio de onde foi retirada a epígrafe:

Pline Le Jeune, Lettres, tome deuxième, Libraire Garnier Frères, Paris, 1931.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Notícia: Workshop Infantil

Porque é na infância que ganhamos gosto pelos livros, vai ter lugar no próximo dia 16 de Setembro (sábado), pelas 16h, em Linda-a-Velha, um Workshop destinado a crianças com o tema «Proteger os meus livros». Este projecto, da responsabilidade de Inês Rosa e promovido pela Bulhosa, tem como principal objectivo ensinar às crianças que proteger os seus livros pode ser uma actividade criativa e lúdica. Para mais informações e para poderem conhecer outros trabalhos de Inês Rosa, visitem o blogue Tintas.aos.montes.

domingo, setembro 10, 2006

O livro na estante

Há livros que vemos há tanto tempo na estante de nossa casa, livros mais velhos do que nós, que acabam por passar despercebidos, como se a sua presença constante os tornasse, lastimavelmente, invisíveis. Um desses livros era, na estante de minha casa, um volume dedicado a Soeiro Pereira Gomes, um livro castanho com o título Obras Completas de Soeiro Pereira Gomes legível na lombada. Um dia, em conversa com uma amiga (obrigada, Inês), fala-me ela de um dos seus livros preferidos, Esteiros. Pergunta-me se conheço, se já li e eu digo-lhe (vem-me à cabeça a tal lombada castanha na estante) que conheço, mas que nunca li. Depois de ouvir o entusiasmo com que me falava do livro, fiquei a pensar porque é que nunca tinha lido aquele livro que sempre ali esteve ao alcance da minha mão. Às vezes percorremos corredores de livrarias à procura de livros que, no momento, são para nós absolutamente essenciais e, afinal, temos em casa outros que hão-de ser para sempre essenciais, sem que o adivinhemos.

Redimi-me da minha falta e li Esteiros. Agora, é também uma das minhas preferidas, a história dos «moços que parecem homens e nunca foram meninos». Livro que segue a mesma divisão que a vida das suas personagens, condicionada pelos trabalhos de cada estação do ano, Esteiros conta com agilidade, a mesma que os meninos demonstravam quando roubavam laranjas das quintas, as peripécias que a miséria sem remédio pode trazer. Falo em miséria, mas já me arrependo de o ter feito, porque a palavra miséria ensombra a beleza do livro, nas suas descrições, na capacidade de dar fala aos homens e mulheres que nada podiam fazer senão esperar, não em posição medidativa, mas a trabalhar. Aí está uma grande diferença entre os Castros e as Marias do Bote, uns esperam a meditar na companhia de um pensativo cigarro, os outros esperam a trabalhar e a sonhar com um despertador que os deixe dormir sem sobressaltos, até que seja hora de ir trabalhar novamente.

Tendo como paisagem de fundo uma terra à beira-Tejo, de que os turistas de pé calçado vinham apreciar a beleza em tempo de cheias e de morte, e tendo como fundo da paisagem os esteiros, Soeiro Pereira Gomes conta um ano na vida de um grupo de meninos crescidos antes do tempo. No entanto, o que julgo ser mais extraordinário nesta obra é a capacidade de uma narrativa tão despretensiosa nos fazer esquecer, desde a primeira página, todo o saber enciclopédico que possamos ter acumulado ao longo dos anos sobre neo-realismo e sobre a literatura da primeira metade do século xx. Tudo isso se esbate perante a possibilidade de conhecer as vidas literárias de gente a sério.


Edição utilizada:

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, com ilustrações de Álvaro Cunhal, in Obras Completas de Soeiro Pereira Gomes, Edições Avante, Lisboa, 1979.

Outras edições:

domingo, setembro 03, 2006

A antologia



Publicada pela primeira vez em 1963, pela editora Minotauro, a antologia Surrealismo/Abjeccionismo, organizada por Mário Cesariny, reúne textos (sejam eles feitos de palavras, de traços ou de imagens) de nomes que marcaram a arte e a literatura feitas em Portugal no século xx.

Apesar do título dado à antologia, nela não encontramos exclusivamente autores ligados ou associados de forma mais directa ao Surrealismo português. Assim o provam a inclusão de um conto de Irene Lisboa, ou a presença de Almada Negreiros entre os nomes escolhidos por Mário Cesariny. Julgo que, por isso, será justo pensar que a escolha dos nomes a figurar na antologia não terá sido feita em função da militância em relação ao movimento surrealista, até porque o termo ‘militância’ é avesso à liberdade criadora (ou destruidora) que marca e é condição sem a qual não poderíamos sequer falar de Surrealismo.

O que este volume contém é, isso sim, um conjunto de textos que servem de introdução, porque é impossível esgotar tudo o que foi feito sobre e no Surrealismo num só livro, ao pensamento e à criação surrealistas. Nas páginas de Surrealismo/Abjeccionismo encontramos a relação do Surrealismo com o passado e com os seus contemporâneos, nem sempre pacífica, se pensarmos no Neo-Realismo (leia-se, a este propósito, o texto que abre esta antologia, de Afonso Cautela). Mais importante que tudo, vemos que, no caos destruidor, há uma coesão que nos permite hoje falar do Surrealismo português enquanto movimento que requer uma reflexão sobre a sua natureza e sobre a produção artística dos seus intervenientes. Mas será talvez nas palavras destes que encontramos o melhor manual de aprendizagem:

Diga-se, apesar disso: — Enriquecimento não no sentido de se construir, mas no de se destruir, precisamente, não me enganei — DESTRUIR. Deixemos a dialéctica no bolso dos fáceis, explica mas não realiza, desvia o conhecimento, contrai. Destruir é construir? Engano: destruir é realizar-se outro objecto ou noutro mas nunca construi-lo.
(António Maria Lisboa, «Certos outros sinais»)

Actualmente, este livro encontra-se disponível em edição fac-similada do original de 1963, publicada pela editora Salamandra.

Surrealismo/Abjeccionismo, antologia seleccionada por Mário Cesariny de Vasconcelos, Edições Salamandra, Lisboa, 1992.

Disponível aqui