quarta-feira, maio 30, 2007

Retrato simpático de uma leitora


Promete José Régio na dedicatória que antecede a sua novela Davam Grandes Passeios aos Domingos... que este será o seu “primeiro retrato simpático de rapariga”. Todavia, não é tanto essa a impressão com que me deixou a leitura do primeiro capítulo desta novela. Ao assistir à chegada de Rosa Maria a Portalegre, sozinha, ingénua, julguei que a tentativa de traçar o tal “retrato simpático de rapariga” tinha afinal resultado num olhar condescendente sobre a personagem criada pelo próprio Régio.

Depois de ficar órfã, Rosa Maria é acolhida por familiares ricos de Portalegre. Todos os que frequentam a casa dos tios e dos primos funcionam como um bloco linear, onde cada personagem é porta-estandarte de certas características que o narrador faz questão de habilmente evidenciar através do uso do discurso indirecto, ao olhar crítico do leitor. É na convivência com esta alta sociedade de província que a rapariga vai despertando desse torpor cândido que era a sua vida até então.

Esta aprendizagem progressiva de Rosa Maria e a sua evolução de carácter é transposta para o texto em vários momentos. Dois aspectos me parecem, no entanto, particularmente interessantes. O primeiro está ligado com as transformações que vão ocorrendo na maneira como Rosa Maria vê aqueles que a rodeiam e de como a percepção cada vez mais aguda da sua futilidade a divide entre um sentimento de desprezo e superioridade e, ao mesmo tempo, a culpa por se sentir assim em relação aos familiares que ainda vê como seus benfeitores:

Mas era quase contra vontade, e pelo irresistível agir dum espírito de observação que se lhe impunha como alheio, (pois, mau grado esse espírito, ainda então havia nela muita puerilidade) que Rosa Maria fulgurantemente criticava, em tais momentos fugidios, todos que a cercavam. Em tais momentos não podia deixar de vagamente lhes sentir superior — a todos! Não passavam, porém, de esquivos momentos que, por censura interior mal consciente, pendia a reprimir ou esquecer, acusando-se de ingrata e presumida. (p.33)

A puerilidade de que se fala nesta passagem vai desaparecendo até ao momento de viragem brusca, já perto do fim da novela, que transforma irreversivelmente Rosa Maria. Mas, o ponto que é, para mim, mais curioso no texto é a relação da personagem como a literatura. Régio recupera para a sua novela um tópico bastante corrente na literatura do século XIX: os efeitos da leitura na sensibilidade feminina. De resto, esta relação de Rosa Maria com a leitura é a também uma forma de revelar as mudanças que a personagem vai sofrendo ao longo da novela. Se quando ainda vivia com a mãe, as duas liam tudo (à excepção “dos Eças” que a mãe havia escrupulosamente guardado do olhos da filha), pois embora distinguissem os livros “melhores dos inferiores”, não conseguiam criticá-los, depois da reviravolta que lhe faz ver que a vida é, na realidade, bastante diferente da existência ficcional das heroínas dos romances, torna-se numa leitora diferente. Se antes a leitura resultava no desejo de imitação, no fim da novela descobre novos prazeres na leitura e as comparações são feitas por contraste. Por isso, o que mais me encantou neste texto não foi o tal “retrato simpático de rapariga” prometido por Régio, mas sim o poder assistir à transformação de uma leitora ingénua numa leitora crítica.

E como nunca reconhecera tão bem a profundeza de certas observações, a delicadeza de certos pormenores, a justeza de certas análises — nunca a leitura lhe dera assim um prazer ao mesmo tempo intenso e subtil. Lá consigo, e independentemente do juízo fosse de quem fosse, Rosa Maria sabia, agora, reconhecer um livro sincero e verdadeiro. Mas até os mais ingénuos continuavam a interessá-la: era como se brincasse entre crianças, para se esquecer de haver crescido. A verdade é que procurava aconchegar-se nesses mundos imaginários contra a realidade agreste ou baça. (pp. 90-91)

Edição utilizada:

José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos e outros contos, Editores Associados, s.l., s.d.

segunda-feira, maio 21, 2007

When is a book out of print?


“When is a book out of print?” é a pergunta que está a gerar controvérsia entre editoras e autores e é, também, a frase que abre o artigo «Publisher and authors parse a term: out of print», datado já de dia 18, mas que só ontem tive a oportunidade de ler.
A leitura deste artigo recomenda-se, entre outras razões, por ser um convite à reflexão sobre as consequências (positivas e negativas) que os avanços tecnológicos têm, em concreto, no mundo editorial e de que modo essas mudanças obrigam a uma reavaliação, neste caso, de fronteiras.
Perante as possibilidades oferecidas pelo print-on-demand, a editora Simon & Schuster decidiu rever um aspecto contratual que está a deixar os autores descontentes.
Deixo aqui um excerto do artigo que pode ser lido na íntegra aqui.

Traditionally, if a book falls out of print, authors are contractually allowed to ask their publishers for their rights back so that the author can try to have the book republished somewhere else.

(…)

But with the advent of technologies like print-on-demand, publishers have been able to reduce the number of back copies that they keep in warehouses. Simon & Schuster, which until now has required that a book sell a minimum number of copies through print-on-demand technology to be deemed in print, has removed that lower limit in its new contract.

domingo, maio 20, 2007

“Man with a movie camera”



Publicado em 2001, com a chancela da editora Cotovia, Livro Usado, de Jacinto Lucas Pires, surgiu integrado na colecção «Série Oriental / Viagens». Reunindo vários autores de língua portuguesa, José Eduardo Agualusa, Bernardo Carvalho e Paulo José Miranda, para além do próprio Jacinto Lucas Pires, a «Série Oriental / Viagens» resulta de uma parceria entre a Cotovia e a Fundação Oriente. Para os escritores o desafio consistiu em viajarem para países como Goa, Mongólia, Macau ou Japão e registarem em forma de livro as suas visões do Oriente.

O resultado da viagem de Jacinto Lucas Pires ao Japão é o seu Livro Usado, um livro de viagens cuja leitura nos faz esquecer que o que temos nas mãos é um livro, parecendo, ao invés, que estamos a espreitar as notas que outra pessoa apontou sobre a sua viagem. Parece, realmente, um caderno em forma de livro o que chegou até nós, com o registo do percurso do escritor pelas cidades japonesas que visitou, das impressões e dos pequenos incidentes do quotidiano, através dos quais se marca, no fundo, a nossa igualdade, mas também a nossa individualidade cultural. Se são as coisas mais banais que nos contam que a vida corre da mesma maneira a Este (as pessoas que passeiam nos jardins em Tóquio ou que regressam a casa ao fim do dia são as mesmas aqui ou no Japão), são, do mesmo modo, os pequenos pormenores que nos lembram que estamos num mundo diferente do nosso: no metro, “uma mulher pequena, de óculos e com uma máscara de cirurgião na boca”; “um rosto de fada ou de bruxa, todo pintado de branco”; um homem novo que se levanta do seu lugar na carruagem para, em sinal de respeito, cumprimentar um outro homem, mais velho, com uma vénia, retribuída pelo outro de forma mais comedida (pp. 16 e 17).

Afinal, diz-nos o próprio Jacinto Lucas Pires, numa intromissão da escrita na observação da vida, que o objectivo não é outro senão o de “escrever sobre a vida, fazer da vida o assunto, compreender a vida” (p.21). A frase “óbvia” e “difícil” é, na verdade, o que está por trás de cada cidade, de cada descrição, de cada pessoa que se vê na rua, escolhida como actor, actriz ou figurante das cenas que se vão desenrolando perante os nossos olhos.

Os universos cinematográfico e teatral são presença e método de escrita, poder-se-á dizer, que não passam despercebidos neste livro: “Logo a seguir, como num filme, um rapaz lança-se a correr atrás de uma rapariga que é só um ponto lá ao fundo, longe. A multidão de velhos de tichârte, jovens executivos e mulheres novas de sapatos altos fica pasmada a olhar. O rapaz corre, corre, mas quando está mesmo a apanhá-la, a rapariga, lembrando-se de alguma coisa, pára e dá meia volta; e os dois acabam por ir um contra o outro, surpresos e felizes (como num filme).” (p.20); “De manhã, sob o céu branco, as pessoas aparecendo na rua como num palco, numa peça de teatro nô” (p. 28). À transposição, meticulosa e de uma visualidade acutilante, para palavras da luz das cidades, do seu movimento próprio não é estranha a linguagem própria do cinema e do teatro, áreas nas quais o autor também tem desenvolvido uma intensa actividade. Este cruzamento da escrita com o aspecto visual do cinema e do teatro transformam cada momento do dia, numa cidade distante, em objecto plástico, cada cidade num acontecimento cénico, no qual nem o próprio escritor se esquiva de participar, fazendo das palavras câmara que acompanha a sua descoberta do Japão.

quarta-feira, maio 16, 2007

APEL e UEP

Cito o Diário Digital:

Os presidentes das duas associações de editores portuguesas, a UEP e a APEL, anunciaram hoje a resolução a curto prazo de todos os conflitos que as separaram desde 1999.

Em conferência de imprensa conjunta com Carlos Veiga Ferreira, da União de Editores Portugueses (UEP), o presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), António Baptista Lopes, anunciou «a resolução a muito curto prazo de todos os conflitos que separaram as duas associações».

Os acordos estão já prontos, indicou o mesmo responsável, e «só falta» formalizá-los.

Esta formalização, segundo o presidente da UEP, poderá ocorrer durante as próximas Feiras do Livros de Lisboa e do Porto, que começam no dia 24.

«O clima conflitual, que se traduziu até em alguns casos em acções judiciais», está, assegurou Veiga Ferreira, definitivamente sanado.

O mesmo editor considerou ser possível «vaticinar» uma associação unitária de editores no futuro.

«Não quero fazer futurismo, mas acho que caminharemos para o que acontece noutros países, isto é, uma associação de livreiros e uma associação de editores», disse.

O clima de conflito entre as duas associações iniciou-se aquando da organização da Feira do Livro de Lisboa em 1999.

Este ano, as duas associações organizam em conjunto as feiras do livro de Lisboa e do Porto, o que levou Baptista Lopes a afirmar que se vive «um clima de pacificação e concórdia».

Segundo os dois responsáveis, pontos de divergência como a modernização e profissionalização do sector editorial são agora encarados da mesma forma por ambas as associações.

Ainda durante a conferência de imprensa, Baptista Lopes referiu-se à UEP nestes termos: «São amigos e colegas com os quais começaremos a trilhar um caminho de modo mais solidário».

Diário Digital / Lusa

domingo, maio 13, 2007

Um romance e um documento



Acerca da obra de Maria Archer, disse a estudiosa Ana Paula Ferreira que, nas suas páginas, a escritora «deixou-nos o que se pode considerar um panorama da vida privada, ou das mentalidades e condutas características de certa faixa burguesa e pequeno-burguesa da sociedade portuguesa entre as décadas de trinta e cinquenta.»* Nada lhe Será Perdoado é um bom exemplo para ilustrar a afirmação de Ana Paula Ferreira.

Atribuindo à sua narrativa um forte cunho biográfico e, consequentemente, verídico, a narradora adverte reservar-se apenas ao papel de veículo, de «pena de romancista» usada para contar a história de outrem. Assim nos é apresentada a história que se irá centrar na figura de Biluca Morgado, menina criada no seio da alta burguesia do Algarve, mas dentro da qual é sempre uma filha bastarda. O romance, que parte da simplicidade de contar a vida acidentada de uma mulher, é, também, motivo para retratar, com uma crueza jornalística, uma burguesia provinciana, regida por um jogo de interesses e de aparências cujas regras impõem que se exclua e se estigmatize quem não souber jogar.

Depois de um casamento fracassado, Biluca vê na possibilidade de cortar laços com a família o caminho para alcançar a sua independência, mudando-se para a capital. Mas Lisboa, cidade cosmopolita, não a livra dos ouvidos e das bocas do Algarve. Esta mulher, agora livre, vai descobrir que nem todas as diferenças são para melhor e rapidamente percebe que em Lisboa, como em Faro, a inocência e a transparência não são características que lhe garantam a sobrevivência.

Em cada episódio da vida de Biluca Morgado, a escritora deixa-nos uma crítica aguda e de precisão cirúrgica a uma sociedade que esconde os seus podres debaixo do tapete do imaculado lar. O problema do papel estereotipado da mulher na sociedade — esposa, mãe, crente, discreta e obediente — vivido em plenitude, pelo menos na aparência, é, neste romance, colocado numa dupla perspectiva. A questão das mentalidades é talvez, a mais evidente desde o início, desde que é traçado o perfil da sociedade algarvia. Porém, se a personagem de Nada lhe Será Perdoado encontrou a coragem para enfrentar essa sociedade, materializando essa coragem no confronto com a avó, e se aprendeu a contorná-la em Lisboa pelo fingimento, há um último obstáculo que ela não consegue vencer. Na realidade, o problema que, julgo, Maria Archer mais insiste em expor e em tornar evidente é o da independência económica. Não há verdadeira independência sem independência económica e, como bem alerta a escritora, não tendo acesso a algo tão básico como dinheiro e sem meios próprios para o conseguir, Biluca não poderia ter outro fim senão o fracasso.

*A Urgência de Contar. Contos de Mulheres dos anos 40, organização de Ana Paula Ferreira, Editorial Caminho, Lisboa, 2002, p. 277.

Edição usada:
Nada Lhe Será Perdoado, Maria Archer, Edições SIT, Lisboa, s/d.

Podem encontrar esta obra na edição da Pareceria A. M. Pereira.

sexta-feira, maio 11, 2007

Poesia na SPA

A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) promove nos próximos dias 14, 21 e 30, em Lisboa, três debates sobre a poesia portuguesa e a sua função nos tempos que correm.

António Carlos Cortez, crítico de poesia, enquadra os movimentos e as obras ao longo dos três debates.
Na segunda-feira, estarão em foco os anos 60, a poesia de Fiama Hasse Pais Brandão, Luísa Neto Jorge e Ruy Belo.
No dia 21, o debate centra-se nos anos 70 e na poesia de Nuno Júdice, António Osório, Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge.
No último debate, dia 30, são os últimos 20 anos e a poesia de Luís Miguel Nava, Paulo Teixeira, Manuel Gusmão, Luís Quintais e Daniel Faria o tema da conversa.

Os debates começam às 18:30 na sede da SPA, em Lisboa.

Diário Digital / Lusa

quinta-feira, maio 10, 2007

"Leitura furiosa"

Tomei conhecimento desta iniciativa através do Jornal de Notícias, de onde retiro o texto abaixo transcrito.

O objectivo é ir ao encontro de jovens excluídos que, pelas mais variadas razões, arredaram os livros das suas vidas. Por isso, a iniciativa não podia ter outro nome nem os destinatários poderiam ser outros "Leitura furiosa" arranca hoje, no Porto, junto de grupos de "zangados com a leitura" do Centro Educativo Santo António e da Qualificar para Incluir. O programa começa com encontros entre os escritores Regina Guimarães e Pedro Eiras e jovens das referidas instituições.

A partir dessas conversas, que vão decorrer durante o dia de hoje, cada um dos escritores envolvidos vai elaborar um texto que, amanhã, será discutido e corrigido com os intervenientes, em sessões que vão contar com a presença de João Alves e Sofia Lomba, a quem cabe ilustrar este trabalho. Ao fim do dia, os textos são enviados para a associação Cardan, que desenvolve este projecto em França desde 1993. Este ano, além do Porto, também a cidade de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, se alia à iniciativa da associação, sediada em Amiens.

Os escritos resultantes dos encontros do Porto e de Amiens, assim como as respectivas ilustrações, serão publicados na edição de domingo do Jornal de Notícias. Para esse dia está marcada uma sessão pública de leituras musicadas, com base nesses textos, pela voz de Ana Deus. Será no Museu de Serralves, a partir das 16 horas.

No âmbito da "Leitura furiosa" está ainda prevista uma ronda por várias livrarias do Porto, na manhã de sábado, que culminará com uma visita à Biblioteca Almeida Garrett. A ideia é que nesse passeio participem, se não todos, pelo menos alguns dos jovens envolvidos nesta iniciativa.

Segundo Regina Guimarães, este projecto "não é uma oficina da escrita nem uma oficina de leitura". "Leitura furiosa" parte de encontros "entre escritores com obra publicada e grupos de pessoas que, por razões diversas, não lêem ou não gostam de ler". Tudo para "fazer com que essas pessoas presenciem um momento que vai ter existência escrita" e, por outro lado, "fazer com que pessoas que, liminarmente, rejeitam a leitura, possam reconsiderar essa relação negativa", conclui.

"Leitura furiosa" é uma iniciativa do Serviço Educativo de Serralves, tendo sido estabelecidos protocolos com as citadas instituições.

quinta-feira, maio 03, 2007

Ler os clássicos




Li Homero pela primeira vez quando entrei para a faculdade, o que rapidamente se provou ser um erro, ainda que por razões que parecem fazer afronta às regras mais básicas da lógica. A altura não foi a melhor: comecei a ler a Ilíada e a Odisseia tarde demais e cedo demais. Tarde demais, porque não devia ter esperado até que ler Homero fosse uma obrigação; cedo demais, porque quando o fiz ainda não existiam as traduções de Frederico Lourenço e as edições da Cotovia. Li, pois, a Ilíada e a Odisseia em duas edições de bolso, o que, desde logo, antevi ser meio caminho andado para uma leitura penosa. E, realmente, foi penoso ler os feitos de Aquiles e de Ulisses numa tradução de outra tradução, com um corpo de letra minúsculo, com uma mancha que não deixa espaços em branco, nem para o leitor respirar.

Durante noites a fio, mais do que as que seriam necessárias para ler os dois volumes, me debati com a vontade de ler tudo na diagonal, e o dever de ler, no fundo, uma das mais importantes matrizes da literatura ocidental. Ler a Odisseia era mais fácil, a narrativa das aventuras de Ulisses parece resistir melhor, pelo menos para mim, a uma má edição. Terá ajudado, muito provavelmente, o facto de ter lido, ainda em criança, a adaptação do texto homérico feita por João de Barros e já conhecer todos os episódios da viagem de Ulisses. Quanto à Ilíada, devo confessar que a tarefa não foi tão fácil e, muito honestamente, a cada página que passava, não via a hora de Aquiles matar Heitor. Em abono da verdade, para esta impaciência não ajudava o facto de ter de ler a Ilíada quase em contra-relógio, uma vez que em fila de espera já se encontravam a Odisseia e a Eneida.

Mesmo assim, julgo que o grande problema está em haver quem ainda não tenha compreendido que ler um livro numa edição de bolso não tem que ser um castigo que quem não tem a possibilidade de comprar outras edições tem que sofrer. Uma edição de bolso, como o comprovam os livros ingleses, franceses ou, aqui mais perto, espanhóis, pode ter um custo mais baixo sem que isso resulte num produto de fraca qualidade. Não podemos esquecer que o compromisso de um editor para com os compradores dos seus livros não é apenas o de ir acrescentando títulos ao seu catálogo, mas sim, e principalmente, de fazer chegar até aos leitores objectos de qualidade, tanto ao nível de conteúdos como ao nível gráfico. Um bom livro não se faz simplesmente com um bom texto e um mau livro pode desvirtuar a leitura de uma obra, por melhor que esta seja.

Apesar de tudo, li os dois livros, integralmente. Porém, passado o alívio inicial, a leitura não me deixou em bons termos com Homero. Eu sabia que tinha lido, mas não sentia como se tivesse realmente lido. Não consegui apropriar-me do texto. Quando as novas edições da Ilíada e da Odisseia foram publicadas com a chancela da Cotovia, e tive oportunidade de as ir folheando nas livrarias, comecei a achar que estava na altura ler os clássicos novamente, em especial a Ilíada. Ainda não o pude fazer, mas vou lendo a Ilíada num suporte alternativo. A beleza dos clássicos, é que, em relação a eles, o verbo «ler» não se usa no passado, porque a sua leitura não acaba no acto físico de abrir um livro, de ler, de ir virando as páginas. A minha leitura da Ilíada é, afinal, contínua e sempre renovada, sem que eu tenha voltado a abrir o meu livro.