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sábado, fevereiro 17, 2007

Duas sugestões de leitura














Aproveitando o fim-de-semana e a folga do Carnaval, deixo aqui duas sugestões de leitura. Duas, porque quando li o segundo livro, já este ano, me lembrei do outro, lido o ano passado. Trata-se de dois livros pertencentes, ambos, à literatura do fantástico.


Seguindo um critério cronológico, o primeiro livro é de autoria de Stefan Grabinski, autor polaco, que escreveu publicou no início do século XX (em 1919) O Demónio do Movimento. Este conjunto de contos, entre nós editado pela primeira vez muito recentemente, em 2003, foi traduzido por Maria José e Wojciech Charchalis. Uma vez que se trata de um autor pouco conhecido, é de todo o interesse que, antes de iniciar a leitura dos contos, se leia o epílogo de Wojciech Charchalis, para que se possa ter uma noção mais exacta do contexto literário e também para que se conheça melhor a vida e obra de Stefan Grabinski.
O segundo livro cuja leitura gostaria de sugerir é de publicação mais recente. Biblioteca, de Zoran Živković, editado em 2002, chegou até nós pela mão da Cavalo de Ferro em 2005.

O motivo pelo qual falo destes dois livros conjuntamente é o facto de, tanto um como outro, terem algo em comum. Na verdade, ambos os autores resolveram pegar num elemento e explorá-lo ao num conjunto de histórias, tratando-o sob diversas perspectivas, sempre de forma surpreendente e inusitada. Em O Demónio do Movimento, é o comboio o elemento escolhido como centro e obsessão de todos os contos: as carruagens, a mecânica, o som, os carris, os movimentos de partida, chegada e de passagem envolvem as personagens levando-as a agir impulsionadas pelo espanto, o desespero ou simplesmente numa espécie de comportamento compulsivo mas que, simultaneamente, tem algo de resignado, como se não tivesse ao seu alcance mudá-lo de alguma forma.

Em Biblioteca, encontramos seis histórias que se debruçam e exploram o tema da bibliofilia das mais diversas e inesperadas maneiras. Livros que em si contém uma biblioteca, bibliotecas virtuais que dispõem de todos os livros (mesmo daqueles que ainda não foram escritos), a tranformação do inferno numa biblioteca, nestes contos tudo é possível. Não obstante, tão curioso quanto os cenários criados por Zoran Živković são os comportamentos das várias personagens perante as diferentes bibliotecas que visitam ou que chegam até elas: desde a admiração, a incredulidade até a uma aceitação passiva a tudo o que assistem, todos os tipos de reacções se encontram perante estas seis bibliotecas tão peculiares.

Depois de lermos O Demónio do Movimento e Biblioteca, resta-nos esperar que a tradução para português destes autores não se fique por estes dois volumes e que, brevemente, possamos ver outros livros seus nas nossas livrarias.

Stefan Grabinski, O Demónio do Movimento, Tradução de Maria José e Wojciech Charchalis, 1.ª edição, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2003.

Zoran Živković, Biblioteca, tradução de Arijana Medvedec, 1.ª edição, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2005.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Cinema e Literatura




Estreou a semana passada nas salas de cinema portuguesas o filme Little Children, em português Pecados Íntimos. O filme, realizado por Todd Field, é uma adaptação de uma obra homónima do escritor Tom Perrota, livro que agora vou procurar ler com uma dupla intenção: em primeiro a lugar a de conhecer o autor e, em particular, este romance, e em segundo lugar a de fazer a inevitável comparação com a outra obra que nele teve origem.

Curiosamente, a voz do narrador, elemento mais comum na narrativa escrita, é transposta para a adaptação cinematográfica, muito embora se vá fazendo ouvir cada vez menos, à medida que caminhamos para o final desta história. É esta voz que, no início do filme, nos apresenta as personagens para além do que elas aparentam ser.
Toda a acção do filme se desenrola num típico bairro suburbano da América, habitado por famílias aparentemente normais, como se cada pessoa não fosse mais do que aquilo que dela se vê e ouve num contexto de convívio (ou talvez seja mais correcto usar o termo coabitação, por ser uma palavra de sentido mais neutro) social.
Seriam, realmente, famílias compostas por pessoas que poderíamos até considerar banais não fosse o facto de a personalidade de cada um, aquilo que torna cada uma das personagens de algum modo particular e singular, se diluir naquela vida de aparências, de conversas ocas enquanto vêem os filhos brincar no parque. E este perder-se a si próprio naquilo que identificamos como sendo o outro mas que não somos nós resulta numa procura que nem sempre é conduzida pelo bom senso.
Mas uma busca que não é conduzida pelo bom senso não é necessariamente uma busca inútil. Pelo contrário, para as personagens deste filme, as lutas de cada um, diferentes é verdade, são radicais, no sentido em que lutam para descobrir a raiz de alguma coisa que perderam, ou que sabem que precisam de encontrar. Noutros casos, porém, a luta faz-se para reprimir e tentar escapar a um erro (que devemos considerar no sentido de desvio ou falta, e não de engano) de matriz psicológica que interfere na convivência com o outro e que dá origem a uma diferenciação, mais ou menos generalizada, pela negativa.

A dada altura, numa troca de opiniões entre mulheres pertencentes a um clube de leitura, a propósito das diversas leituras que haviam feito do romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary, gera-se uma interessante discussão entre duas personagens. Nesta troca de palavras, uma delas representa, através da sua opinião fechada e impermeável a novas ideias, uma sociedade puritana. Sarah, que defende a complexidade de Emma Bovary, oferece-nos, julgo eu, a ideia que define o filme (e o livro?). Todas as procuras, todas as lutas de que falei antes são, afinal, fundamentais, porque guiadas pela «fome»: os seus actos, os de Madame Bovary e os das pessoas que acompanhamos no filme, são guiados pela fome de saber que deve haver mais qualquer coisa que nos está vedada, seja por que motivo for.