
Mais uma vez, queria agradecer o simpático convite da editora Renata Miloni para participar neste número com um artigo sobre a ficção de Jacinto Lucas Pires.
Boas leituras.
livros e leituras
É também a primeira tradução feita directamente do alemão, por João Barrento, com a chancela da Dom Quixote, a editora que está a publicar a obra completa daquele romancista austríaco, falecido em 1942.
A apresentação dos livros decorrerá no Goethe Institut, onde dois actores profissionais irão ler alguns excertos do romance.(Nos anos setenta, saiu em Portugal uma tradução do mesmo romance, mas feita a partir da versão francesa e que não incluía o terceiro volume, publicado já depois da morte do escritor).
«O homem sem qualidades», que ocupou Musil durante os últimos quinze anos da sua vida, é hoje considerado uma das obras mais influentes da literatura moderna, ao lado de «Ulisses», de James Joyce, e de «À procura do tempo perdido», de Marcel Proust.Segundo o tradutor, o terceiro volume do romance deverá ser publicado no início de 2009.
«Foi uma das maiores e mais exigentes traduções que fiz», disse Joao Barrento, um dos mais prestigiados tradutores portugueses de alemao e que assinou, entre outras, a tradução de «Fausto» de Goethe.
Terceiro livro publicado de Patrícia Portela, Odília ou história das musas confusas do cérebro de Patrícia Portela esquiva-se a qualquer tentativa de arrumação em géneros. Talvez por isso seja tão difícil prever em que secção das livrarias o vamos encontrar.
O texto, acompanhado das ilustrações da própria autora, é exactamente o que encontramos representado nas primeiras imagens que antecedem a história de Odília – um novelo. Um novelo que se estende para fora do texto e que, assim, desafia a fronteira entre obra e livro, entre ideia e objecto.
Justamente pela sobreposição de imagem e palavra que abarca o objecto que serve de suporte físico à história destas musas confusas, parece que, mais do que uma simples história, estamos perante uma narrativa encenada, servindo a capa de cortina ao que iremos assistir. Aliás, facilmente associamos a própria linguagem de Patrícia Portela ao teatro, área a que a autora dedica o seu trabalho há já vários anos.
Texto e livro são, portanto, uma unidade que não é estanque, que não encontra limites nas margens da literatura, mas antes a invade, através da inclusão no processo criativo de estratégias que visam incorporar o exterior. Neste ponto não podem passar despercebidas as notas de autor, de tradutor e de editor que Patrícia Portela cria como parte integrante da narrativa. Do mesmo modo, não podemos esquecer as pretensas linhas de leitura pelas quais a autora guia o leitor e que mais não são do que formas de chamar a atenção para a maleabilidade do objecto escrito, das possibilidades que oferece e que extravasam a sequência ditada no momento da criação.
Odília é também um emaranhado de ideias, de apontamentos pessoais e sempre algo encriptados de que Patrícia Portela mistura os fios numa composição que oferece tanto quanto oculta, sendo o seu carácter lacónico um convite a uma interpretação única e pessoal.
Por outro lado, uma das marcas deste texto é sem dúvida o facto de ser uma narrativa em que tempo e espaço se esbatem (mais uma vez, também aqui se anulam fronteiras) e que claramente se compraz na volubilidade do passado e do presente, que ao invés de nos servirem de guias, reforçam o poder demiúrgico do narrador (que aqui se confunde intrinsecamente com a figura da autora, por ser tão evidente o carácter pessoal das páginas que lemos). As questões quotidianas do nosso tempo invadem a Grécia Antiga e a sua mitologia, ou será o contrário? Será que essa mitologia tem uma origem mas o seu poder metafórico não é datado? Será o seu uso meramente instrumental?
No meio de tal novelo (o sonho de Odília) a estabilidade reside na repetição que baliza a narrativa. Esta repetição textual poderia deitar por terra a ideia de infinitude, mas a circularidade da história e da memória garante que assim não seja. Nunca vemos o fim do novelo porque o seu fio, tal como a colcha de Penélope, deve ser enrolado e desmanchado ad aeternum, ele prolonga-se para além das páginas do livro.
O Olho da Letra não podia deixar passar despercebida a edição da primeira tradução (do original, nunca é de mais realçar) para português de Orlando Furioso, tarefa que ficou a cargo da tradutora Margarida Periquito. Finalmente, podemos ler o poema épico de Ludovico Ariosto na nossa língua e numa edição cuidada da Cavalo de Ferro, que conta ainda com ilustrações de Gustave Doré. Bebendo na tradição épica dos poemas homéricos, mas não deixando de reprentar o espírito de emulação característico da estética literária da época em que foi escrito (século XVI), o poema de Ariosto foi um dos modelos de Camões. Por isso, quem leu Os Lusíadas irá certamente encontrar novas pistas de leitura que enriquecerão a epopeia portuguesa.
Num país sem tradição memorialística, como é o caso português, no qual as memórias representam sobretudo a justificação de acções pretéritas, procurei apresentar a minha vida friamente. O facto de ter tentado registar tudo aquilo que vivi pode criar a ilusão de objectividade, mas é evidente que cada um cria a «sua» própria história e a da «sua» família.
O excerto, retirado da introdução à autobiografia de Maria Filomena Mónica, explica claramente o que se pode encontrar em Bilhete de Identidade – uma tentativa de que a objectividade presidisse à escrita destas memórias. Não obstante, a objectividade é aqui evocada não no sentido de filtrar o passado, mas no sentido de não retirar ou incluir episódios da vida por autocensura ou por outra qualquer razão. Todavia, e como se explicita na segunda parte do excerto, dificilmente poderá alguém rever a sua vida sem mácula de subjectividade. Maria Filomena Mónica não é excepção, como ela própria adverte o leitor ao afirmar que este não encontrará no seu livro a Verdade, mas apenas a sua verdade.
Ora, a falta de “tradição memorialística” a que alude a autora tem consequências também na forma como lemos um género não muito usual na nossa língua. Nos primeiros capítulos, foi comum não ver com bons olhos certas passagens, principalmente quando começaram a aparecer referências às “criadas” da família Mónica, termo que sempre me pareceu insultuoso. Depois, com a descrição da vida escolar, também senti que havia ali uma ponta de orgulho injustificada, já que a rebeldia à instituição não lhe seria perdoada se ela não proviesse de uma família como a sua. No entanto, trocando impressões com o amigo que simpaticamente me emprestou o livro, consegui aplacar a tentação de ver as memórias de outra pessoa apenas com os meus olhos. O conselho de enquadrar Maria Filomena Mónica no seu contexto foi seguido, o que me permitiu ler o livro com objectividade, definitivamente mais necessária do lado do leitor do que do lado do escritor, neste caso.
Muito embora não seja uma leitora assídua de biografias ou de autobiografias, julgo que a premissa de que partiu a autora de publicar o seu livro “sem medos, nem sentimentalismos” beneficia sobretudo o leitor. Ainda assim, e ironicamente, o tom excessivamente sentimentalista que marca as páginas em que Maria Filomena Mónica fala do seu casamento, principalmente no capítulo dedicado ao seu fim, prejudica o livro no seu todo por lhe quebrar o ritmo.
Não obstante, estas memórias ganham um novo fôlego com a ida de Maria Filomena Mónica para Inglaterra, até porque, a partir deste ponto, a vida da autora se vai cruzando de forma mais intensa com a vida política nacional. Com a Revolução de Abril, temos a possibilidade de ver esse cruzamento entre a vida pessoal da autora com a agitação social e política que marcou Portugal e, aqui sim, talvez pelo tempo já passado, é-nos dada uma visão desse período sem sentimentalismos.
Maria Filomena Mónica, Bilhete de Identidade: memórias 1943-1976, Alêtheia Editores, 2006.
É, portanto, em Nova Iorque que vamos encontrar três núcleos de personagens que acabam por se cruzar. A primeira parte do livro, intitulada “Personagens” serve, justamente, para nos apresentar a Trick Watso, estrela pop mundial; Carlos Abroso, jornalista de um canal de televisão português; e o efémero O Grupo, composto por quatro actores: Violet, Jill, Grossman e Velasquez.
Trick está a tratar da orquídea na sala quando ouve o som. Dizem que há quem o confunda com o estrondo de uma porta, um barulho na televisão, um escape de automóvel, mas Trick Watso, a estrela planetária da pop, percebe logo que é um tiro.
Assim começa Perfeitos Milagres, pelo fim. O tiro de que fala o excerto é o tiro que Kim, mulher de Trick, dispara contra ela própria. A morte, aliás, é omnipresente no romance, embora não a narrativa não se centre nela. O tema ligado à morte recorrente no livro, é, pelo contrário, a reacção das personagens às mortes que as afectam, ou seja, as histórias acabam por se centrar nas diferentes formas encontradas para sobreviver perante a morte. Em Trick, a reacção à morte da mulher passa por se livrar de um Trick fabricado, ironicamente, fabricando uma outra identidade que lhe permita ser de novo anónimo. Além disso, a morte de Kim traz o fantasma de outra morte (de outro suicídio) que ele julgava enterrada na sua própria memória, a da mãe. É procurando compreender o que aconteceu quando ainda era Theodore, que Trick procura sobreviver a mais uma perda.
Uma outra morte assinala o fim da apresentação das personagens: o fim d’O Grupo. Constituído por quatro actores visionários, que pretendem descontextualizar o teatro tirá-lo do palco e levá-lo para o quotidiano das pessoas, O Grupo actua em entradas de hotéis, ou no meio de transeuntes na rua. No entanto, parecem falhar no principal: conseguir uma reacção das pessoas, conseguir provocá-las de modo a interromper-lhes o fluxo ininterrupto e sempre igual do correr dos dias.
Apesar de a acção se situar em Nova Iorque, o autor quis que houvesse um elemento português no seu romance e, assim, talvez se explique a personagem de Carlos Abroso. Todavia, a sua presença apenas me parece justificada na relação que mantém com outras personagens, não sendo, por si só, uma personagem interessante. Carlos parece antes uma sombra que se vai cruzando com as outras personagens.
Ainda no que diz respeito ao espaço do romance, decorrendo a acção na Nova Iorque pós-11 de Setembro, não é de surpreender que a actualidade irrompa com mais ou menos relevância na narrativa. Referências, normalmente bastante directas, à guerra, ao terrorismo, à paranóia ou a referência à situação dos suspeitos de terrorismo presos pelo governo americano são questões que também encontram aqui lugar.
Mais uma vez, os universos do cinema e do teatro, tão caros ao autor (como já tinha referido numa outra ocasião a propósito do seu livro de viagens Livro Usado), continuam a ser uma marca (bem presente) da escrita de Jacinto Lucas Pires. Nas descrições das personagens, que muitas vezes nos fazem lembrar indicações de um encenador ou realizador, ou na descrição de espaços (principalmente exteriores), em que parece estarmos a acompanhar os planos captados por uma câmara, torna-se bastante evidente que a componente visual é um dos ponto fortes de Perfeitos Milagres. Em relação ao teatro, essa presença é ainda mais evidente, como se verá, já perto do fim, em “Textos”.
Não obstante, o que mais me agradou neste romance foram sem dúvida os pormenores, as ligações que se vão fazendo entre as personagens e que não passam pela presença de umas perante as outras. São pequenas coisas (ou grandes) para se ir descobrindo durante a leitura. Mas estas ligações, este “bailado de fios invisíveis”, para usar uma expressão do livro que é também uma desses fios a descobrir, revelam, afinal, a mão criadora – uma das surpresas do livro a ser descoberta em “Autobiografia”.
Jacinto Lucas Pires, Perfeitos Milagres, Livros Cotovia, 2007.
O terceiro volume da colecção “A Biblioteca de Babel” reúne dez contos de Giovanni Papini, autor esquecido que Jorge Luis Borges recupera também do seu próprio esquecimento.
Diz-nos Borges na introdução a O Espelho que Foge: “À semelhança de Poe, que foi sem dúvida um dos seus mestres, Giovanni Papini não pretende que os seus contos fantásticos pareçam reais. O leitor sente desde o início a irrealidade do ambiente de cada um deles.” De facto, as situações que servem de cenário a cada história não cabem naquilo que identificamos como sendo plausível na nossa realidade. No entanto, os temas abordados nestes contos não nos podiam ser mais próximos: a identidade, o tempo, a vida e a morte equacionadas a partir destes dois vectores fundamentais.
O equilíbrio conseguido entre esta irrealidade e as personagens que não poderiam viver “fora da ficção que sucessivamente vão animando” (ainda usando as palavras de Borges) e as questões já identificadas poderá ser delicado, mas o resultado não deixa de ser extraordinário. E esta eficácia é conseguida sobretudo pela inquietação, que por seu turno é provocada pela percepção de que, neste livro, são abordadas ideias sobre a identidade, sobre a passagem do tempo e sobre a morte que a todos, mais ou menos fugazmente, já passaram pela cabeça, mas que raramente encontramos escritas de forma tão directa, aspecto para que muito contribuirá a escolha do conto como forma de apresentar a narrativa. Caso paradigmático do que falo será o conto “Não quero mais ser aquilo que sou”, em que o narrador compreende que nunca poderá ser outro que não ele e que nunca poderá viver outra vida que não a sua.
Não se pode, julgo, dizer que a perspectiva adoptada por Papini nos seus contos seja pessimista, dever-se-á antes falar de melancolia, seguindo Borges. Mas penso, igualmente, que poderemos falar de aceitação a propósito da forma como Papini aborda os temas de eleição destes seus contos. Porém, não é uma aceitação fatalista, no sentido de que as coisas são como deveriam ser. Há antes uma aceitação no sentido da compreensão de que as coisas são como são (mas, o que são?) e que funciona com ponto de partida para a desconstrução da realidade, obviamente, através do fantástico. Ainda assim, note-se que esta tentativa de perceber o que cada um é e o que é a vida não resulta numa reflexão plácida. Pelo contrário, os caminhos a que essa busca conduz revelam-se, por vezes, de forma dolorosa, senão leiam-se, por exemplo, os contos “A última visita do Cavalheiro Doente” ou “Quem és tu?”. Aqui é colocada em xeque a identidade e, consequentemente, a existência de cada um e de todos como algo que não está na nossa posse, transitando a propriedade daquilo que somos para outros (visíveis ou invisíveis) dos quais não só depende a nossa existência, mas que também fazem de nós o que somos. Por outro lado, em “O espelho que foge” é a própria vida que é vista à luz do absurdo.
Em relação aos contos reunidos neste volume, é difícil, senão injusto, destacar um ou outro, uma vez que eles compõem um conjunto bastante homogéneo, fazendo d' O Espelho que Foge um título que não deve passar despercebido dentro d’ “A Biblioteca de Babel”.
a: a novel foi o primeiro livro escrito por Andy Warhol, embora tenha sido publicado apenas em 1968 (a título de curiosidade, alguns meses depois de Valerie Solanas ter tentado matar Warhol), segundo nos informa Victor Brockis, no glossário que encontramos no fim desta edição.
Apesar de ter o livro há algum tempo, agora que o doclisboa vai exibir Andy Warhol: A Documentary Film, no próximo domingo, no cinema S. Jorge, pareceu-me a altura ideal para o ler.
O livro de Warhol, porém, dificilmente poderá ser visto como isso mesmo, um livro. Quer dizer, é, de facto, um livro, no entanto, é, acima de tudo, mais um digno representante da pop art. Nascido de gravações feitas entre 1965 e 1967, o livro documenta fragmentos que, no seu conjunto, formam um retrato da vida daqueles que gravitavam à volta da famosa Factory. Aqui, destacam-se Ondine, o actor de Chelsea Girls, mais uma vez no papel principal, e as conversas em que Lou Reed participou e que andam à volta dos Velvet Underground (não esqueçamos que em 1967 é editado o primeiro álbum da banda, produzido pelo próprio Wahrol) e, obviamente, de drogas (a também é a primeira letra de anfetaminas).
Se se quiserem aventurar na leitura de a podem contar com uma escrita completamente fragmentada, que resulta da transcrição feita por quatro pessoas e sem qualquer tipo de correcção, já que Andy Warhol parece ter gostado do efeito caótico. Aliás, a acção de Warhol sobre a versão em bruto, por assim dizer, destes diálogos, consistiu em tornar o texto ainda mais obscuro.
Fundamental antes de iniciar a leitura de a: a novel é, sem dúvida, ler o glossário de Victor Brockis (biógrafo de Warhol) onde é explicada a génese do livro e onde é incluída a lista de personagens e lugares, devidamente contextualizados, que vão surgindo ao longo destas 451 páginas de pop art com a assinatura de Andy Wahrol.
Andy Warhol, a: a novel, Virgin Books, 2005.
A proposta de Taras Grescoe no seu livro The Devil’s Picnic é simples: uma viagem a vários países em busca do fruto proibido. Partindo deste desafio, o autor propõe uma reflexão sobre as razões que levam à proibição do consumo de certos produtos, bem como sobre as consequências dessas mesmas restrições. Sejam quais forem os motivos apresentados por cada governo, a conclusão de Grescoe, que é, fundamentalmente, a tese por ele defendida, é invariavelmente a mesma: o fruto proibido é sempre o mais apetecido.
Clichés à parte, quer se esteja a falar das restrições impostas aos noruegueses no que diz respeito ao consumo de bebidas alcoólicas, ou às leis que visam controlar o consumo de queijo feito a partir de leite não pasteurizado, na França, os resultados de tais proibições acabam por ter consequências mais nefastas nos povos por elas afectados do que o consumo livre desses produtos alguma vez teria. Esta é a conclusão a que o autor chega em cada capítulo, onde são abordados um país e uma proibição diferentes.
Não há dúvida de que Grescoe procedeu a uma aturada pesquisa sobre a cultura dos países por ele visitados, assim como sobre as leis que os regem. Além disso, não passa despercebido o estudo que o autor fez sobre a história das proibições um pouco por todo o mundo. No entanto, e por mais interessantes que os dados e curiosidades por ele apresentados possam ser, o livro acaba por ser demasiado circular e repetitivo. Por outras palavras, a estrutura do primeiro capítulo (dedicado à sua viagem à Noruega) é repetida como fórmula em todos os outros capítulos. Há uma proibição que é questionada, seguindo-se a verificação in loco dos efeitos dessa mesma proibição, a procura de factos e estatísticas que suportem a tese do autor e a comparação com outros casos semelhantes dentro ou fora do país ou região em causa.
Assim, e apesar do tom humorístico com que Taras Grescoe tenta marcar as suas viagens, este não deixa de ser um livro que talvez fique aquém as expectativas, tanto para quem procura um livro de viagens como para quem procura uma possível história do fruto proibido.
O jogo, obsessão que vai tomando conta da personagem principal deste livro, Alexis Ivanovitch, durante a sua permanência na fictícia cidade de Rolemtemburgo, foi também um vício que Dostoiévski viveu. Não é, pois, de estranhar que todo o ambiente das salas de jogo seja descrito com uma proximidade e conhecimento que podemos atribuir tanto ao jogador como ao romancista. A profundidade que Dostoiévski alcança na descrição da psicologia de um jogador é, mais do que impressionante (adjectivo que, no caso, me parece um pouco vazio), claustrofóbica.
Muito embora o vício do jogo seja claramente o centro de todo o romance e o dinheiro pareça ser sempre o ponto que define as relações entre todas as personagens, o amor, tratado como obsessão e como gerador de uma violência latente na iminênica de extravasar, é, neste romance, o contraponto que nos permite entender de que modo o jogo conduz a uma total alienação, bem visível na última conversa entre Mr. Astley e Alexis, que serve, também, de conclusão ao livro.
Apesar de Dostoiévski não ser, por ventura, o tipo de leitura que procuremos em plena silly season, garanto que não vai ser um livro abandonado ao fim de poucas páginas.
Apenas uma palavra em relação à tradução, tendo lido outros livros de Dostoiévski publicados pela Presença e traduzidos por Nina Guerra e Filipe Guerra, directamente do russo, não pude deixar de estranhar um pouco esta tradução de Delfim de Brito (Guimarães Editores). Para quem, como eu, também está habituado às traduções da dupla Nina Guerra e Filipe Guerra, deixo, em baixo, o link para os sites das duas editoras.
Fiódor Dostoiévski, O Jogador, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Editorial Presença.
Fiódor Dostoiévski, O Jogador, tradução de Delfim de Brito, Guimarães Editores.
Título de um conto de Jorge Luís Borges, “A Biblioteca de Babel” é também o nome atribuído à colecção dedicada à literatura fantástica dirigida pelo escritor argentino. Tendo começado a ser publicada na década de setenta, “A Biblioteca de Babel” acabou por incluir mais de trinta títulos, todos escolhidos e prefaciados por Borges.
Nos últimos meses (julgo que desde Março ou Abril), a editora Presença tem vindo a publicar os livros desta colecção, dando, assim, pela primeira vez, oportunidade aos portugueses de lerem, na sua língua, alguns dos autores caros a Borges.
Já com cinco livros disponíveis nas livrarias, esta é sem dúvida uma colecção a não perder. Para além do evidente valor histórico de termos nas nossas livrarias a colecção editada à mais de trinta anos atrás por Franco Maria Riccci, “A Biblioteca de Babel” tem, a meu ver, a grande qualidade de reunir autores sobejamente conhecidos, como Allan Poe ou Kafka, para dar apenas dois exemplos, e autores esquecidos ou nunca reconhecidos. Trata-se, pois, de uma iniciativa editorial única, a seguir de perto nos próximos tempos.
Como já referi, foram já cinco os volumes de “A Biblioteca de Babel” publicados pela Presença. Aqui ficam os títulos e respectivos autores a procurar numa próxima passagem por uma livraria.
“A Biblioteca de Babel”
1. Gustav Meyrink, O Cardeal Napellus
2. Pedro A. de Alarcón, O Amigo da Morte
3. Giovanni Papini, O Espelho que Foge
Depois de algumas semanas de ausência, o Olho da Letra vai voltar ao ritmo normal, agora, também, com mais tempo para as leituras. A leitura das histórias inverosímeis de Christa Wolf, que foi interrompida pelo acréscimo do volume de trabalho, terá de ser recomeçada e ainda me esperam as últimas aquisições feitas durante a Feira do Livro. Entretanto, a silly season vai ser uma boa altura para rever algumas leituras.
Precisamente para renovar o modo como vemos certas obras, lembrei-me de reler a crítica de T. S. Eliot a Hamlet, e que se encontra recolhida no volume Ensaios Escolhidos, publicada pela editora Cotovia. Quando partimos para a leitura de certas obras, como é o caso de Hamlet de Shakespeare, que adquiriram o estatuto de obras-primas da literatura, começamos a ler com o conforto de sabermos que esse título que lhes é atribuído nos liberta de uma postura crítica e objectiva mais rigorosa. Por outras palavras, liberta-nos, a nós leitores, do trabalho individual de desconstrução do texto (nos seus mais variados aspectos) e deixa-nos apenas com a obsessão de ver o que outros já viram. Se a opinião geral, e até esmagadora, sobre a peça de Shakespeare é a de que estamos perante a obra complexa de um génio, todo o trabalho de descodificação textual vai ser empregue em acompanhar o génio e não em questioná-lo, em tentar vencer a anunciada complexidade e não em compreender os mecanismos responsáveis por essa dita complexidade.
Não foi este, porém, o caminho seguido por T. S. Eliot no seu ensaio sobre Hamlet. Não só o seu texto expõe o que ele entende como sendo as fragilidades da crítica que o antecedeu, como defende que aquela que é considerada a obra maior de Shakespeare é, na verdade, “um insucesso artístico” (p. 19). Aliás, numa frase, Eliot consegue resumir de forma clara e lapidar o seu ponto de vista acerca da peça e da leitura generalizada que é dela é feita: “E provavelmente mais pessoas considerariam Hamlet uma obra de arte porque a acharam interessante, do que a acharam interessante porque é uma obra de arte. É a «Mona Lisa» da literatura” (p. 19).
Não vou aqui fazer um resumo dos argumentos usados por Eliot no seu ensaio, porque me parece mais relevante que cada um faça a sua leitura de Eliot e que, depois, vá questionar o que é aparentemente inquestionável, seja Hamlet, seja outra qualquer obra. A mérito do texto de Eliot não está em ficarmos convencidos de que Hamlet é um “insucesso artístico”, como o próprio diz. Podemos ou não concordar com Eliot, total ou parcialmente, mas o que realmente importa é perceber que a crítica literária não serve para ser aceite ou reprovada cegamente, tão-pouco serve para ser parafraseada ou até mesmo debitada. O papel da crítica não é o de nos levar a ler com os olhos dos outros. Deve ser, em primeiro lugar, o de nos obrigar a ler com outros olhos.
T.S. Eliot, Ensaios Escolhidos, selecção, tradução e notas e Maria Adelaide Ramos, Livros Cotovia.
Promete José Régio na dedicatória que antecede a sua novela Davam Grandes Passeios aos Domingos... que este será o seu “primeiro retrato simpático de rapariga”. Todavia, não é tanto essa a impressão com que me deixou a leitura do primeiro capítulo desta novela. Ao assistir à chegada de Rosa Maria a Portalegre, sozinha, ingénua, julguei que a tentativa de traçar o tal “retrato simpático de rapariga” tinha afinal resultado num olhar condescendente sobre a personagem criada pelo próprio Régio.
Depois de ficar órfã, Rosa Maria é acolhida por familiares ricos de Portalegre. Todos os que frequentam a casa dos tios e dos primos funcionam como um bloco linear, onde cada personagem é porta-estandarte de certas características que o narrador faz questão de habilmente evidenciar através do uso do discurso indirecto, ao olhar crítico do leitor. É na convivência com esta alta sociedade de província que a rapariga vai despertando desse torpor cândido que era a sua vida até então.
Esta aprendizagem progressiva de Rosa Maria e a sua evolução de carácter é transposta para o texto em vários momentos. Dois aspectos me parecem, no entanto, particularmente interessantes. O primeiro está ligado com as transformações que vão ocorrendo na maneira como Rosa Maria vê aqueles que a rodeiam e de como a percepção cada vez mais aguda da sua futilidade a divide entre um sentimento de desprezo e superioridade e, ao mesmo tempo, a culpa por se sentir assim em relação aos familiares que ainda vê como seus benfeitores:
Mas era quase contra vontade, e pelo irresistível agir dum espírito de observação que se lhe impunha como alheio, (pois, mau grado esse espírito, ainda então havia nela muita puerilidade) que Rosa Maria fulgurantemente criticava, em tais momentos fugidios, todos que a cercavam. Em tais momentos não podia deixar de vagamente lhes sentir superior — a todos! Não passavam, porém, de esquivos momentos que, por censura interior mal consciente, pendia a reprimir ou esquecer, acusando-se de ingrata e presumida. (p.33)
A puerilidade de que se fala nesta passagem vai desaparecendo até ao momento de viragem brusca, já perto do fim da novela, que transforma irreversivelmente Rosa Maria. Mas, o ponto que é, para mim, mais curioso no texto é a relação da personagem como a literatura. Régio recupera para a sua novela um tópico bastante corrente na literatura do século XIX: os efeitos da leitura na sensibilidade feminina. De resto, esta relação de Rosa Maria com a leitura é a também uma forma de revelar as mudanças que a personagem vai sofrendo ao longo da novela. Se quando ainda vivia com a mãe, as duas liam tudo (à excepção “dos Eças” que a mãe havia escrupulosamente guardado do olhos da filha), pois embora distinguissem os livros “melhores dos inferiores”, não conseguiam criticá-los, depois da reviravolta que lhe faz ver que a vida é, na realidade, bastante diferente da existência ficcional das heroínas dos romances, torna-se numa leitora diferente. Se antes a leitura resultava no desejo de imitação, no fim da novela descobre novos prazeres na leitura e as comparações são feitas por contraste. Por isso, o que mais me encantou neste texto não foi o tal “retrato simpático de rapariga” prometido por Régio, mas sim o poder assistir à transformação de uma leitora ingénua numa leitora crítica.
E como nunca reconhecera tão bem a profundeza de certas observações, a delicadeza de certos pormenores, a justeza de certas análises — nunca a leitura lhe dera assim um prazer ao mesmo tempo intenso e subtil. Lá consigo, e independentemente do juízo fosse de quem fosse, Rosa Maria sabia, agora, reconhecer um livro sincero e verdadeiro. Mas até os mais ingénuos continuavam a interessá-la: era como se brincasse entre crianças, para se esquecer de haver crescido. A verdade é que procurava aconchegar-se nesses mundos imaginários contra a realidade agreste ou baça. (pp. 90-91)
Edição utilizada:
José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos e outros contos, Editores Associados, s.l., s.d.
Primeiro romance do jornalista Rui Cardoso Martins, E se eu gostasse muito de morrer parte de um facto («são estatísticas e está tudo em números») e de uma pergunta inevitável: a taxa de suicídios é mais elevada no Alentejo do que no resto do país. Porquê?
O livro de Rui Cardoso Martins foi publicado ainda em 2006 e foi há cerca de dois meses que o li, depois de assistir a uma apresentação da obra feita pelo autor, na Biblioteca Municipal de Póvoa de Santa Iria. Ao ouvir o escritor falar da sua obra era impossível não satisfazer a curiosidade com que fiquei em relação a este livro, que, aliás, já me tinha chamado a atenção nos escaparates das livrarias, obviamente pelo título.
E se eu gostasse muito de morrer, título que é, também, uma citação da obra maior de Dostoievski, Crime e Castigo, aborda em forma de romance um tema que parece, pelo menos à primeira vista, mais fácil de tratar num estudo sociológico do que numa obra de ficção. A escolha singular, todavia, não me tornou de modo nenhum céptica em relação ao livro. Muito pelo contrário, já que era grande a vontade de o ler e descobrir qual a maneira encontrada por Rui Cardoso Martins para versar sobre este tema no género por ele eleito.
À partida, eram dois os problemas que me pareciam poder dificultar a tarefa de centrar um romance no que, afinal, é um dado estatístico e, no reverso da medalha, uma realidade humana de contornos trágicos. Ou a narrativa acabaria por mergulhar demasiado no lado mais dramático do suicídio, ou, no extremo oposto, à força de querer abordar a questão de forma excessivamente objectiva, o resultado seria, justamente, um estudo sociológico e não um romance.
Felizmente, Rui Cardoso Martins conduz a narrativa sem cair em nenhum dos extremos, facto que muito deve à escolha do narrador. Um rapaz que perdeu a sua mais importante ligação ao mundo exterior oferece-nos a sua visão peculiar do mundo, do Alentejo (onde sempre viveu), das pessoas que o rodeiam... É esta marca pessoal que nos conduz numa série de episódios em que a tragédia é contada com ironia e, por vezes, até com humor (negro, claro está). A perda de alguém que não morreu, deixa o narrador sozinho a contas com um lugar cuja história é feita da memória dos que ali optaram pela morte. É intrusada na morte nos outros que vamos ficando a conhecer a vida do nosso narrador, sendo a sua própria história fragmentada ao longo do livro (espelho do que mundo em que vivemos?).
E se eu gostasse muito de morrer fala-nos de um Alentejo distante da miragem de paredes caiadas de branco e vida calma que nos habituamos a evocar sempre que pensamos no sul do país. Aqui, é uma imagem decadente daquela região que é trazida à superfície; um Alentejo marcado por uma realidade ainda por explicar. Ao chegarmos à última página, a questão inicial continua sem resposta: porquê?... Abyssus abyssum invocat.
Rui Cardoso Martins, E se eu gostasse muito de morrer, 3.ª edição, Dom Quixote, Lisboa, 2007.