domingo, abril 22, 2007

"E se eu gostasse muito de morrer"



Primeiro romance do jornalista Rui Cardoso Martins, E se eu gostasse muito de morrer parte de um facto («são estatísticas e está tudo em números») e de uma pergunta inevitável: a taxa de suicídios é mais elevada no Alentejo do que no resto do país. Porquê?

O livro de Rui Cardoso Martins foi publicado ainda em 2006 e foi há cerca de dois meses que o li, depois de assistir a uma apresentação da obra feita pelo autor, na Biblioteca Municipal de Póvoa de Santa Iria. Ao ouvir o escritor falar da sua obra era impossível não satisfazer a curiosidade com que fiquei em relação a este livro, que, aliás, já me tinha chamado a atenção nos escaparates das livrarias, obviamente pelo título.

E se eu gostasse muito de morrer, título que é, também, uma citação da obra maior de Dostoievski, Crime e Castigo, aborda em forma de romance um tema que parece, pelo menos à primeira vista, mais fácil de tratar num estudo sociológico do que numa obra de ficção. A escolha singular, todavia, não me tornou de modo nenhum céptica em relação ao livro. Muito pelo contrário, já que era grande a vontade de o ler e descobrir qual a maneira encontrada por Rui Cardoso Martins para versar sobre este tema no género por ele eleito.

À partida, eram dois os problemas que me pareciam poder dificultar a tarefa de centrar um romance no que, afinal, é um dado estatístico e, no reverso da medalha, uma realidade humana de contornos trágicos. Ou a narrativa acabaria por mergulhar demasiado no lado mais dramático do suicídio, ou, no extremo oposto, à força de querer abordar a questão de forma excessivamente objectiva, o resultado seria, justamente, um estudo sociológico e não um romance.

Felizmente, Rui Cardoso Martins conduz a narrativa sem cair em nenhum dos extremos, facto que muito deve à escolha do narrador. Um rapaz que perdeu a sua mais importante ligação ao mundo exterior oferece-nos a sua visão peculiar do mundo, do Alentejo (onde sempre viveu), das pessoas que o rodeiam... É esta marca pessoal que nos conduz numa série de episódios em que a tragédia é contada com ironia e, por vezes, até com humor (negro, claro está). A perda de alguém que não morreu, deixa o narrador sozinho a contas com um lugar cuja história é feita da memória dos que ali optaram pela morte. É intrusada na morte nos outros que vamos ficando a conhecer a vida do nosso narrador, sendo a sua própria história fragmentada ao longo do livro (espelho do que mundo em que vivemos?).

E se eu gostasse muito de morrer fala-nos de um Alentejo distante da miragem de paredes caiadas de branco e vida calma que nos habituamos a evocar sempre que pensamos no sul do país. Aqui, é uma imagem decadente daquela região que é trazida à superfície; um Alentejo marcado por uma realidade ainda por explicar. Ao chegarmos à última página, a questão inicial continua sem resposta: porquê?... Abyssus abyssum invocat.


Rui Cardoso Martins, E se eu gostasse muito de morrer, 3.ª edição, Dom Quixote, Lisboa, 2007.


sábado, abril 21, 2007

Anna Enquist


Disse, há uns tempos, que a poesia passaria a estar mais presente no Olho da Letra. A partir de agora deixarei aqui os poemas e os poetas que vou descobrindo (ou redescobrindo).

Hoje, é um poema da holandesa Anna Enquist que aqui fica. Anna Enquist (1945), pseudónimo escolhido por Christa Widlund-Boer, viu o seu primeiro livro de poemas, Soldatenliederen (título que poderá ser traduzido em português como “canções de soldados”), publicado em 1991. Embora a maior parte da sua obra seja dedicada à poesia, é também autora de romances. Alguns dos seus livros já foram traduzidos entre nós (O Segredo e A Obra-prima), mas ainda não conheço a Anna Enquist romancista.

Descobri o poema “Mentiras em tempo de Groselhas” numa antologia de poesia neerlandesa, editada pela Assírio & Alvim. Uma Migalha na Saia do Universo reúne poemas belgas e holandeses do século XX, numa selecção de Gerrit Komrij. Se tiverem oportunidade, vale a pena lerem este livro, a começar pela introdução de Gerrit Komrij. Uma vez que esta é uma edição bilingue, aqui fica o poema de Anna Enquist em neerlandês e em português.

Leugens in Bessentijd

Welke constructie is steviger, heeft langer
standgehouden. En hoe meer er wonen, hoe
minder je wegkomt. Waarheen. Het verlangen
is een zomerhuis zonder kookplaats en zonder
geschiedenis. Hier ben ik omdat ik hier ben.


Vannacht was ik wakker, het waaide, regen
striemde de kastanje terwijl het al licht werd,
de nacht had geen rust gebracht. Ik wist
wel hoe dat zat, ging slapen en ontwaakte
in een stille morgen, wit van verdriet.

Men kan niet blijven zeuren. De pruimen
ploffen rottend van de bomen, in de koude
tuin worden de kleuren snel ouder.
Alles er-
varen zonder verdoving, pannen klaarzetten en
suiker, archieven beheren, scherven bewaren.

Mentiras em tempo de groselha

Que construção é mais sólida, se aguentou
mais tempo. E quantos mais aí moram, menos se
a consegue abandonar. Para onde. Anseia-se
por uma casa de Verão sem um fogão e sem
história. Estou aqui porque estou aqui.


Esta noite estive acordada, fazia vento, chuvas
fustigavam o castanheiro, enquanto já vinha o dia,

a noite não tinha trazido paz. Eu sabia

como eram as coisas, fui dormir e acordei

numa manhã de silêncio, lívida de tristezas.


Não se pode continuar com lamúrias. As ameixas
baqueiam podres das árvores, no frio
quintal as cores envelhecem velozes. Experi-
mentar tudo sem anestesia, pôr a postos as panelas e
o açúcar, gerir os arquivos, guardar os cacos.


Uma Migalha na Saia do Universo, selecção e introdução de Gerrit Komrij, tradução de Fernando Venâncio, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997.

sexta-feira, abril 20, 2007

"Vou morar no arco-íris"

Tendo percorrido escolas de norte a sul do país para estar mais perto dos seus leitores e melhor lhes dar a conhecer a sua obra, Alexandre Parafita irá agora apresentar o seu mais recente livro. Será no Dia Mundial do Livro, na próxima segunda-feira, a próxima sessão de lançamento de Vou Morar no Arco-íris, num encontro que terá lugar na Biblioteca Municipal de Murça. Fica aqui a notícia para quem passar os olhos por estas letras e viva naquela zona do país. Para quem viver mais a sul, não se esqueçam de procurar o título Vou Morar no Arco-íris numa próxima visita a uma livraria.

terça-feira, abril 17, 2007

Biblioteca pessoal de Calouste Gulbenkian

Soube hoje, ao abrir a minha caixa de correio electrónico, que a biblioteca pessoal de Calouste Gulbenkian vai estar disponível online a partir do próximo dia 19. A apresentação pública desta biblioteca vai realizar-se no mesmo dia pelas 16h. Fica aqui a notícia completa que pode também ser consultada no site da Gulbenkian.


A biblioteca pessoal de Calouste Gulbenkan vai estar disponível para consulta a partir de 19 de Abril no site www.bibliotecaparticular.gulbenkian.pt. O projecto resulta de dois anos de trabalho de identificação, catalogação e recuperação dos cerca de três mil volumes que constituem a biblioteca pessoal do fundador e foi desenvolvido no âmbito das comemorações do cinquentenário da Fundação.

Calouste Gulbenkian reuniu ao longo da sua vida uma importante biblioteca actualmente dividida em dois grandes núcleos. O núcleo constituído pela colecção de manuscritos e obras impressas que ilustram a Arte do Livro no Oriente e no Ocidente, entre os séculos XIII e primeira metade do século XX, encontra-se integrado no acervo do Museu Gulbenkian. O outro núcleo, constituído por cerca de três mil títulos de publicações abrangendo os mais diversos domínios do conhecimento, encontra-se depositado no fundo documental da Biblioteca de Arte, tendo dado origem a muitas das secções temáticas – Pintura, Arquitectura, Desenho, Mobiliário, Cerâmica - da sua actual organização.

Este núcleo, agora disponibilizado para consulta, constitui um instrumento importante para a compreensão da personalidade, dos gostos e preferências estéticas do Fundador, revelando uma parte relativamente desconhecida do legado cujo acesso é reservado, por razões que se prendem com o seu inegável valor patrimonial.

segunda-feira, abril 09, 2007

Teatro Popular Mirandês

Tomei conhecimento da iniciativa através do Jornal de Notícias e a curiosidade encarregou-se de me fazer chegar até ao site do Centro de Estudos António Maria Mourinho. A notícia dava conta do projecto levado a cabo pelo referido centro de estudos de publicar na Internet trinta textos do Teatro Popular Mirandês. A edição destas peças é feita com base em textos que fazem parte do espólio do Padre António Marinho e vem, assim, colocar ao alcance de todos um importante documento literário e cultural que, permanecendo escondido, correria o risco de cair no esquecimento e acabar por se perder.

A publicação destes «colóquios» do Teatro Popular Mirandês, como é dito no texto de apresentação colocado no site, irá realizar-se de duas formas, uma vez que cada texto irá ser disponibilizado em edição digitalizada e em edição interpretativa. A primeira é o resultado da escolha de um exemplar, no caso de haver mais do que um no espólio, para o efeito; a segunda passou já por um processo de normalização de aspectos gráficos e ortográficos, devidamente identificados na informação dada acerca dos critérios de edição, e é acompanhada por notas explicativas referentes, por exemplo, a «mirandesismos e às muitas referências culturais, etnográficas ou históricas à Terra de Miranda, de mais difícil percepção para quem não fale mirandês ou não conheça a história da região.» Se a edição digitalizada, potencialmente, irá interessar mais a linguistas, como é referido no site, e, acrescento eu, todos aqueles que tenham conhecimentos de linguística e se interessem por esta área do saber, já a edição interpretativa tem a virtude de poder levar o Teatro Popular Mirandês a um público mais vasto. Importa também dizer que, após a publicação on-line, prevê-se a publicação destes textos em livro.

Diz Francisco Pinto, jornalista que assina esta notícia sobre a publicação do Teatro Popular Mirandês, que «os textos não se destinam apenas a investigadores mas também a grupos de teatro e associações que pretendam levar à cena este género de representação.» Eu digo que esta iniciativa certamente interessará a todos os leitores e a todos quantos se preocupam com as perdas provocadas pelo esquecimento.


Centro de Estudos António Maria Mourinho

Teatro Popular Mirandês


terça-feira, abril 03, 2007

Maria Archer



Acabada de chegar à minha biblioteca, vinda da livraria Letra Livre, esta 1.ª edição do romance de Maria Archer Nada Lhe Será Perdoado, de 1952, é um importante contributo para a bibliografia que vou tentando reunir e ler sobre a «literatura feminina», ou «literatura no feminino», como preferirem. Como não é todos os dias que consigo encontrar uma primeira edição, não podia deixar de escrever esta breve nota sobre a minha aquisição. Aproveito também para transcrever a nota bibliográfica redigida por Ana Paula Ferreira sobre a escritora Ana Archer, que podem encontrar no livro A Urgência de Contar. Contos de Mulheres dos anos 40.





Nada Lhe Será Perdoado, Maria Archer, Edições SIT, Lisboa, s/d.






Maria Archer (Lisboa, 1905-1982)

Ficcionista, jornalista e ensaísta prolífica, Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira deixou-nos o que se pode considerar um panorama da vida privada, ou das mentalidades e condutas características de certa faixa burguesa e pequeno-burguesa da sociedade portuguesa entre as décadas de trinta e cinquenta. Tendo vivido e, mais tarde, passado temporadas em África, onde recolhe apontamentos históricos e etnográficos, a autora colabora com várias monografias para os «Cadernos Coloniais», desde o início da série em 1935. A maior parte deste material será depois incluído nos seus livros de divulgação colonial, o primeiro dos quais é Roteiro do Mundo Português (1940). Em 1938, o seu livro de literatura infantil, Viagem à Roda de África, ganha o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, do Serviço de Propaganda Nacional. Nesse mesmo ano, aparece o seu segundo livro de novelas, Ida e Volta de Uma Caixa de Cigarros, retirado do mercado em 1939. O arrojo com que se move na sociedade do seu tempo como mulher livre e de ideias avançadas, arrojo que estende a uma obra de ficção denunciando a dependência social, económica, espiritual e sexual femininas, levam-na a ser vista como «uma escritora incómoda». Essa será, pelo menos em parte, a razão pela qual alguns dos seus livros gozam de relativo sucesso junto do grande público, como o provam as suas reedições. O seu romance Casa Sem Pão (1947) é também apreendido pela Censura. Vivendo à custa do seu trabalho e exibindo uma impressionante cultura, de cunho anglófilo em particular, a autora colabora assiduamente em revistas e jornais de Portugal, das então colónias africanas e, mais tarde, do Brasil. É também tradutora de Hellen Grace Carlisle, Anton Coolen e Voltaire. Filiada no Movimento de Unidade Democrática desde 1945, é alvo de perseguições que se intensificam após ter feito a reportagem do julgamento de Humberto Delgado em 1952. Em 1954, exila-se no Brasil , onde publica várias obras de divulgação colonialista (muito embora críticas do regime salazarista), merecendo este filão da sua obra o elogio de, entre outros, Gilberto Freyre. A autora volta a Portugal em 1977, doente e na mais completa destituição, acabando os seus dias num asilo.

Bibliografia parcial:

Três Mulheres (novela, 1935)
Sertanejos (Cadernos Coloniais, 1935)
África Selvagem, Folclore dos Negros do Grupo Bantú (Cadernos Coloniais, 1936)
Ida e Volta de Uma caixa de Cigarros (novelas, 1938)
Há Dois Ladrões Sem Cadastro (novela, 1940)
Roteiro do Mundo Português (divulgação histórica, 1940)
Herança Lusíada (divulgação histórica, com Prefácio de Gilberto Freyre, 1940)
Fauno Sovina (contos, 1941)
Ela É apenas Mulher (romance, 1944)
Casa Sem Pão (romance, 1947)
Há-de Haver Uma Lei (contos, 1949)
Filosofia de Uma Mulher Moderna (contos, 1950)
O Mal não Está em Nós (romance, 1950)
Bato às Portas da Vida (romance, 1951)
Nada Lhe Será Perdoado (romance, 1952)
A Primeira Vitima do Diabo (romance, 1954)
África Sem Luz (contos, 1962)
Brasil, Fronteira de África (divulgação, ensaísmo, 1962)*

*A Urgência de Contar. Contos de Mulheres dos anos 40
, organização de Ana Paula Ferreira, Editorial Caminho, Lisboa, 2002, pp. 277-278.

segunda-feira, abril 02, 2007

Livros infantis


No dia mundial do livro infantil, deixo no olho da letra alguns dos meus livros preferidos em criança.


Se toda a gente em Portugal pudesse tirar uma fotografia assim seria impossível duvidar da nossa capacidade de andar para a frente. Se todos, ao pegarem na máquina fotográfica, hesitassem na escolha dos livros a incluir na fotografia já seria meio caminho andado.

Os manuscritos de Eça



Todos os curiosos e todos os interessados em saber como Eça de Queiroz trabalhava e como construía os seus romances têm agora uma boa oportunidade para satisfazer a sua curiosidade. O Millenium bcp é o proprietário de quatro manuscritos de Eça de Queiroz, que foram doados à Biblioteca Nacional. Numa parceria entre este banco e o Sapo, os manuscritos de A Cidade e as Serras, A Ilustre Casa de Ramires, do texto Novos Factores da Politica Portuguesa e ainda um outro documento que consiste num fragmento de uma página e em fotografias do conjunto dos manuscritos adquiridos foram colocados nesta página e encontram-se disponíveis para download. Para todos aqueles que já ouviram falar do modo como Eça escrevia os seus romances, das constantes revisões e alterações feitas à margem das folhas, encontra nesta iniciativa a possibilidade de ficar a conhecer melhor o método de trabalho de Eça de Queiroz.