terça-feira, outubro 24, 2006

O anti-turista


O livro foi-me recomendado há algum tempo. Passo a explicar melhor como veio ele parar à minha estante: mencionei eu, num texto escrito num outro blogue, o Notes From a Small Island, de Bill Bryson (em português, Crónicas de uma pequena ilha, editado pela Quetzal. Se usei o título em inglês é apenas porque foi em inglês que o li), como leitura obrigatória para quem gostasse de livros de viagens. Como comentário ao post, tive também direito a uma sugestão — Lost Cosmonaut, de Daniel Kalder. Depois de ter seguido o concelho e de ter lido o livro, tenho que, antes de mais, agradecer ao José Carlos por me recomendar a sua leitura.

Feitos a apresentação do livro e os devidos agradecimentos, a primeira afirmação, feita assim, taxativamente, é a de que este é o livro de viagens mais divertido que já li e o mais original, por deitar por terra todas as ideias feitas que possamos ter acerca da literatura de viagens. Em primeiro lugar, será conveniente contextualizá-lo quanto ao percurso que o autor nos oferece: Rússia. No entanto, não se trata da Rússia dos guias turísticos. Nada de Moscovo, nada de S. Petersburgo. Na verdade, este é um roteiro assente sobre os princípios do anti-turismo, que, aliás, abrem o livro, para que o leitor tenha, desde logo, uma ideia (uma pequena ideia, porque nada poderia tirar o efeito surpresa que só acaba com o próprio livro) de que tipo de viagem lhe é oferecido. Não resisto a transcrever aqui alguns desses princípios:

The anti-tourist does not visit places that are in any way desirable.

The anti-tourist travels at the wrong time of the year.

The anti-tourist is interested only in hidden histories, in delightful obscurities, in bad art.

The anti-tourist loves truth, but he is also partial to lies. Especially his own.

Se tiverem curiosidade em saber quais são as restantes regras do anti-turismo, podem consultar o site dedicado ao autor e a este seu primeiro livro, ou, ideia que me parece melhor, ler o Lost Cosmonaut. Falemos da primeira das regras transcritas, que não podia ter sido mais levada à letra por kalder. Avisei já que, caso esperem ler sobre uma agradável visita a Moscovo, não é isso que vão encontrar. Pelo contrário, Daniel Kalder parece ter um talento único para escolher sítios ignorados, esquecidos e, claro está, perdidos no meio de nenhures. Se não lesse este livro saberia que Calmúquia (em inglês, Kalmykia) é governada por Kirsan Ilumzhinov, presidente com o hábito peculiar de espalhar outdoors pelas ruas com fotografias suas tiradas ao lado de pessoas famosas, que tanto podem ser o Dalai Lama como o Chuck Norris? Saberia, sequer, alguma coisa sobre a vida em Mari El? Claro que não, obviamente permaneceria na ignorância até hoje.

Por outro lado, se o anti-turista apenas se interessa por factos obscuros acerca dos lugares por ele escolhidos, nada poderia exemplificar melhor o cumprimento desse princípio do que os capítulos dedicados à história, cultura e religião das repúblicas incluídas no itinerário de Kalder. Episódios como o relato da tentativa, falhada, de tentar entrevistar o inventor da AK 47, em Udmurtia, asseguram-nos, do mesmo modo, que o autor é fiel à sua causa anti-turista. De acordo com o propósito do livro e da viagem estão também as fotografias que ilustram o percurso pouco convencional deste escocês, umas vezes mais perdido do que outras, pela Rússia.

Mas, devo confessar, a declaração que mais interesse me suscita é a última, por ser um desafio colocado a quem lê. Da imaginação bastante fértil de Kalder, incentivada pela possibilidade (talvez dever) de, habilmente, fazer da verdade e da mentira dois instrumentos igualmente válidos de escrita, resulta, afinal, um livro que, ao invés de criar desconfiança, cria cumplicidade entre escritor e leitor.


Edição utilizada:
Daniel Kalder, Lost Cosmonaut, Faber and Faber, London, 2006.
(O livro não foi ainda traduzido para português.)
Disponível aqui ou aqui.

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