domingo, setembro 10, 2006

O livro na estante

Há livros que vemos há tanto tempo na estante de nossa casa, livros mais velhos do que nós, que acabam por passar despercebidos, como se a sua presença constante os tornasse, lastimavelmente, invisíveis. Um desses livros era, na estante de minha casa, um volume dedicado a Soeiro Pereira Gomes, um livro castanho com o título Obras Completas de Soeiro Pereira Gomes legível na lombada. Um dia, em conversa com uma amiga (obrigada, Inês), fala-me ela de um dos seus livros preferidos, Esteiros. Pergunta-me se conheço, se já li e eu digo-lhe (vem-me à cabeça a tal lombada castanha na estante) que conheço, mas que nunca li. Depois de ouvir o entusiasmo com que me falava do livro, fiquei a pensar porque é que nunca tinha lido aquele livro que sempre ali esteve ao alcance da minha mão. Às vezes percorremos corredores de livrarias à procura de livros que, no momento, são para nós absolutamente essenciais e, afinal, temos em casa outros que hão-de ser para sempre essenciais, sem que o adivinhemos.

Redimi-me da minha falta e li Esteiros. Agora, é também uma das minhas preferidas, a história dos «moços que parecem homens e nunca foram meninos». Livro que segue a mesma divisão que a vida das suas personagens, condicionada pelos trabalhos de cada estação do ano, Esteiros conta com agilidade, a mesma que os meninos demonstravam quando roubavam laranjas das quintas, as peripécias que a miséria sem remédio pode trazer. Falo em miséria, mas já me arrependo de o ter feito, porque a palavra miséria ensombra a beleza do livro, nas suas descrições, na capacidade de dar fala aos homens e mulheres que nada podiam fazer senão esperar, não em posição medidativa, mas a trabalhar. Aí está uma grande diferença entre os Castros e as Marias do Bote, uns esperam a meditar na companhia de um pensativo cigarro, os outros esperam a trabalhar e a sonhar com um despertador que os deixe dormir sem sobressaltos, até que seja hora de ir trabalhar novamente.

Tendo como paisagem de fundo uma terra à beira-Tejo, de que os turistas de pé calçado vinham apreciar a beleza em tempo de cheias e de morte, e tendo como fundo da paisagem os esteiros, Soeiro Pereira Gomes conta um ano na vida de um grupo de meninos crescidos antes do tempo. No entanto, o que julgo ser mais extraordinário nesta obra é a capacidade de uma narrativa tão despretensiosa nos fazer esquecer, desde a primeira página, todo o saber enciclopédico que possamos ter acumulado ao longo dos anos sobre neo-realismo e sobre a literatura da primeira metade do século xx. Tudo isso se esbate perante a possibilidade de conhecer as vidas literárias de gente a sério.


Edição utilizada:

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, com ilustrações de Álvaro Cunhal, in Obras Completas de Soeiro Pereira Gomes, Edições Avante, Lisboa, 1979.

Outras edições:

1 comentário:

Inês Rosa disse...

Anda uma pessoa um bocadinho mais ocupada e perde logo uma série de coisas, leia-se textos.
O "obrigada", que me dedicas, devolvo-to com alegria. Por teres levado as minhas palavras até à estante na tua casa. Por teres escrito um bom texto sobre uma das obras da minha vida (sobre a qual ainda não tive a coragem de escrever). Por este blog que faz bem a quem o visita.