quarta-feira, novembro 15, 2006

"Diabolíada"


A editora &etc publicou este ano e não há muito tempo, julgo, a novela Diabolíada do escritor russo Mikhaïl Bulgakov (1891-1940). O facto de ser difícil encontrar traduções de obras deste autor nas nossas livrarias faria, por si só, com que esta edição fosse digna de nota. Porém, depois de ler o livro, cheguei à conclusão de que este não era o único motivo de interesse em Diabolíada. Ainda assim, uma observação menos positiva deve ser feita: a tradução não foi feita a partir do original russo, mas sim de uma tradução francesa. Previno também os potenciais leitores mais interessados em questões de tradução que a edição francesa utilizada não se encontra devidamente identificada. Por outro lado, esta edição tem a seu favor a inclusão de uma biografia do autor acompanhada de cartas de Bulgakov dirigidas a Estaline, bem como de um texto autobiográfico.
A vida literária do autor de Margarita e o Mestre não decorreu livre de dificuldades, em grande parte relacionadas com a ascensão política de Estaline, na antiga U.R.S.S. e as crescentes censura e perseguições de que foram alvo escritores e outras figuras ligadas à cultura na época. Bulgakov viu sucessivamente as suas peças serem tiradas de cena e originais, exemplares únicos das suas obras, serem levados da sua casa. Enfim, ao longo da sua vida sucederam-se entraves ao conhecimento e reconhecimento da sua obra, de tal forma, que não raras vezes escrevia simplesmente para a gaveta, sabendo de antemão que ninguém iria publicar os seus livros ou encenar as suas peças.

Diabolíada ou de como gémeos causaram a morte dum chefe de repartição conta os últimos dias da vida de Korotkov, o chefe de repartição, cuja morte, segundo nos informa à partida o título, foi causada por dois gémeos. Os acontecimentos que acabariam por conduzir à morte desta personagem estão rodeados por uma estranheza que não cabe nos moldes de um mundo racional. Não obstante, o que achei mais interessante neste livro enquanto leitora é que o enredo não vive apenas do fantástico, ou seja, não vive apenas do inexplicável ou da invasão, de consequências sempre imprevisíveis, do sobrenatural no nosso mundo e na vida quotidiana. Na verdade, os episódios que tão violentamente arrancam Korotkov à sua existência enquanto chefe de repartição, tal como a imaginamos antes do início da história, sem sobressaltos, geram-se de duas formas: resultam de equívocos originados pelo conhecimento parcial que a personagem tem da realidade, ou da sugestão de uma intervenção demoníaca (cuja referência mais directa será o cheiro a enxofre mencionado diversas vezes) que controla e brinca com as vidas das personagens a seu bel-prazer. Mas mais curioso é o facto de estas duas vertentes do texto não se encontrarem totalmente separadas. Assim, enquanto que Korotkov se vê perdido num mundo que, de repente, deixa de poder ser explicado pela razão e cujo caos ataca a sua natureza humana e racional, o leitor, por outro lado, vê-se embrenhado em situações que progressivamente deixam de poder ser totalmente esclarecidas pelo tal conhecimento parcial e errado que a personagem tem da realidade. A história termina com a perseguição que levará à morte da personagem principal. Korotkov, ao ver-se cercado pelo mistério dos dois Kalsoners (os gémeos), prefere morrer a viver uma vida que, irremediavelmente, deixou de controlar e de compreender.
— Acabou-se, acabou-se, exclamou debilmente Korotkov. — A batalha está perdida. Tá-tá-tá! Acrescentou, imitando com os lábios o toque de retirada.


Mikhaïl Bulgakov, Diabolíada, tradução de Célia Henriques, &etc, Lisboa, 2006.

Em Lisboa, a única livraria onde, até agora, vi este livro foi na livraria Letra Livre (Calçada do Combro).

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