sábado, janeiro 06, 2007

«Contos Hieroglíficos»









Com uma ideia vaga de estar a ler um livro de um escritor e político inglês do século XVIII e utilizando como introdução à leitura apenas a breve informação inscrita na contracapa do livro, comecei a ler os Contos Hieroglíficos de Horace Walpole. Apesar da aparente seriedade crítica contida nas primeiras linhas do prefácio à obra, não demorei muito a compreender qual o verdadeiro tom que marcaria a escrita de Walpole. O espírito crítico de que falava a propósito do início do prefácio, porém, não desaparece, muito pelo contrário. É justamente a crítica que nos guia num universo em que a nossa lógica, a lógica do mundo tal como o conhecemos, é permanentemente alvo de uma desconstrução sem qualquer tipo de restrições. De resto, a epígrafe escolhida pelo autor serve-nos de aviso para o que nos esperará até que terminemos a leitura do último conto: «Schah Baham ne comprenoit jamais bien que les choses absurdes et hors de toute vraisemblance.»
Detenho-me um pouco mais a falar do prefácio por ser um dos textos introdutórios mais desconcertantes (no melhor sentido da palavra) que já li. Walpole começa por apontar o dedo aos seus contemporâneos, com severidade, ao mesmo tempo que enaltece a obra que apresenta:

Dado que a dádiva inestimável que aqui ofereço ao mundo pode não agradar a todos os gostos – devido à seriedade do assunto, bem como à lucidez de raciocínio e à profunda sabedoria contidas nestas páginas – parece-me necessário apresentar uma justificação para a publicação de tal obra em tempos tão frívolos – uma época em que nada merece atenção senão efémeras intrigas políticas, sátiras pessoais e histórias de amor fúteis. A verdadeira razão que me levou a vencer todas as objecções foi apenas esta: preocupava-me a possibilidade de esta obra se perder para a posteridade. (p.11)

Vê-se claramente neste excerto, todavia, que Horace Walpole sabe usar a ironia, e até, por vezes, o sarcasmo com mestria. Depois de discursar sobre o estado da sociedade em que vive e sobre a importância que a sua obra terá, senão no presente, pelo menos para os futuros leitores, o autor passa para outro plano, o plano da edição e da publicação. Fica bem claro que depois de falar Walpole o escritor, tem a palavra Walpole o editor, que, por seu turno, dá a conhecer aos leitores como decidiu publicar este livro e explica quais as razões práticas que o levaram a optar por editar o livro em vários volumes. O nonsense dos textos de Walpole (acerca do qual já tinha sido informada ao ler a contracapa), que já vinha pontuando desde o início a leitura, toma conta deste prefácio a partir do momento em que se começa a discutir uma origem fictícia destes contos e será uma dos traços mais fortes deste livro até ao último ponto final.
Todos os contos me surpreenderam pela combinação de características que já referi – a ironia, o nonsense, o espírito crítico que este livro revela –, mas também, e sobretudo, pela revolução que Walpole opera sobre as formas de narrativa até então usadas. No entanto, devo dizer que o meu conto preferido é «O Rei e Suas Três Filhas». Talvez possa explicar a minha preferência pelo facto de este ser o conto em que o autor mais se dedica a subverter todas as noções de lógica ao mesmo tempo que nos faz compreender que, afinal, muito pouca lógica existe na sociedade quando constantemente adaptamos os seus princípios aos nossos interesses. Deixo aqui um excerto deste conto, mas, se puderem, leiam o livro.

Havia antigamente um rei que tinha três filhas – ou seja, teria tido três filhas, se tivesse tido mais uma. Mas seja por que razão for, a mais velha nunca chegou a nascer. Era extremamente formosa, dotada de uma sagacidade viva e falava francês na perfeição – nisto, todos os autores da época concordavam, e no entanto nenhum deles afirma que a donzela tenha alguma vez existido.
(...) o rei insistia que a filha mais velha fosse a primeira a casar. Ora, como tal pessoa não existia, tornava-se assaz difícil encontrar um pretendente à altura. (...) a nação depressa se dividiu em facções diferentes. Os rezingões, ou patriotas, insistiam que a segunda princesa era a mais velha, pelo que devia ser declarada herdeira legítima. Foi então que o Chanceler-mor declarou que a segunda princesa não poderia de modo nenhum ser a mais velha, já que nunca houve uma princesa-herdeira que falasse com sotaque de Yorkshire, afirmação que o conselho de ministros admitiu ser impossível de responder. (...) Já que, se não havia uma princesa mais velha, e visto que a segunda teria de ser a primeira, pois não havia primeira, e como ela não podia ser a segunda se já era a primeira, daí se concluía, de acordo com todas as noções de lógica, que ela não poderia ser absolutamente ninguém. Daí se concluía, obviamente, que a mais nova deveria ser a mais velha, uma vez que não tinha irmãs mais velhas.
(pp.23-24)


2 comentários:

Inês Rosa disse...

Pelo excerto que nos apresentas (e pela tua crítica, sempre tão limpa), fiquei com uma enorme vontade de ler o livro!
Outra coisa: o teu último posto no nosso blogue é delicioso.
AH! E obrigada pelo comentário ao quadro ;)

Aida Cardoso disse...

Depois das habituais semanas de confusão natalícia, parece que estamos de volta em todas as frentes: tintas aos montes, the why incision e também por aqui no olho da letra.
Em relação ao «manic monday», obrigada :)