domingo, maio 13, 2007

Um romance e um documento



Acerca da obra de Maria Archer, disse a estudiosa Ana Paula Ferreira que, nas suas páginas, a escritora «deixou-nos o que se pode considerar um panorama da vida privada, ou das mentalidades e condutas características de certa faixa burguesa e pequeno-burguesa da sociedade portuguesa entre as décadas de trinta e cinquenta.»* Nada lhe Será Perdoado é um bom exemplo para ilustrar a afirmação de Ana Paula Ferreira.

Atribuindo à sua narrativa um forte cunho biográfico e, consequentemente, verídico, a narradora adverte reservar-se apenas ao papel de veículo, de «pena de romancista» usada para contar a história de outrem. Assim nos é apresentada a história que se irá centrar na figura de Biluca Morgado, menina criada no seio da alta burguesia do Algarve, mas dentro da qual é sempre uma filha bastarda. O romance, que parte da simplicidade de contar a vida acidentada de uma mulher, é, também, motivo para retratar, com uma crueza jornalística, uma burguesia provinciana, regida por um jogo de interesses e de aparências cujas regras impõem que se exclua e se estigmatize quem não souber jogar.

Depois de um casamento fracassado, Biluca vê na possibilidade de cortar laços com a família o caminho para alcançar a sua independência, mudando-se para a capital. Mas Lisboa, cidade cosmopolita, não a livra dos ouvidos e das bocas do Algarve. Esta mulher, agora livre, vai descobrir que nem todas as diferenças são para melhor e rapidamente percebe que em Lisboa, como em Faro, a inocência e a transparência não são características que lhe garantam a sobrevivência.

Em cada episódio da vida de Biluca Morgado, a escritora deixa-nos uma crítica aguda e de precisão cirúrgica a uma sociedade que esconde os seus podres debaixo do tapete do imaculado lar. O problema do papel estereotipado da mulher na sociedade — esposa, mãe, crente, discreta e obediente — vivido em plenitude, pelo menos na aparência, é, neste romance, colocado numa dupla perspectiva. A questão das mentalidades é talvez, a mais evidente desde o início, desde que é traçado o perfil da sociedade algarvia. Porém, se a personagem de Nada lhe Será Perdoado encontrou a coragem para enfrentar essa sociedade, materializando essa coragem no confronto com a avó, e se aprendeu a contorná-la em Lisboa pelo fingimento, há um último obstáculo que ela não consegue vencer. Na realidade, o problema que, julgo, Maria Archer mais insiste em expor e em tornar evidente é o da independência económica. Não há verdadeira independência sem independência económica e, como bem alerta a escritora, não tendo acesso a algo tão básico como dinheiro e sem meios próprios para o conseguir, Biluca não poderia ter outro fim senão o fracasso.

*A Urgência de Contar. Contos de Mulheres dos anos 40, organização de Ana Paula Ferreira, Editorial Caminho, Lisboa, 2002, p. 277.

Edição usada:
Nada Lhe Será Perdoado, Maria Archer, Edições SIT, Lisboa, s/d.

Podem encontrar esta obra na edição da Pareceria A. M. Pereira.

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